22.10.07

FAMÍLIA CONTEMPORÂNEA: REFLEXÕES E REPERCUSSÕES NA EDUCAÇÃO E NA APRENDIZAGEM ESCOLAR

FAMÍLIA CONTEMPORÂNEA: REFLEXÕES E REPERCUSSÕES NA EDUCAÇÃO E NA APRENDIZAGEM ESCOLAR

Orsi, Maria Julia Junqueira Scicchitano1
Yaegashi, Solange Franci Raimundo2
A sociedade contemporânea, na medida em que vem obtendo ganhos com o rápido desenvolvimento tecnológico e científico, tem se deparado com uma grande transformação no desenvolvimento e na qualidade das relações humanas. Quando os valores que regem a organização social e econômica se modificam, transformam-se também os ideais e o modo de pensar dos homens. Observa-se atualmente, um número crescente e alarmante de crianças e jovens de diferentes níveis sócio-econômico-culturais que apresentam dificuldades na aprendizagem escolar, na escolha profissional e na aceitação e adaptação aos limites impostos pela sociedade, resultando, muitas vezes, em atos de violência que têm aumentado de forma significativa.

No mundo moderno, onde toda comunicação e informação estão universalizadas, transpõe-se cada vez mais as barreiras geográficas, religiosas, tecnológicas e culturais, obtendo acesso quase que totalmente livre ao até então desconhecido e se absorve, indiscriminadamente, características que diferenciavam e, sobretudo, definiam o homem dentro de uma cultura. A interpenetração de tendências e influências do mundo globalizado alcançou a família e seu “modus vivendi”. Na cultura atual, observa-se uma forte crise de valores que culmina na modificação de referenciais que regem o comportamento humano, as relações interpessoais e a vida em sociedade.O capitalismo cria demandas para o consumo que não vão ao encontro das necessidades humanas essenciais, mas acarretam uma formação unidimensional, na qual o sujeito perde a dimensão de sua individualidade e de seus desejos (Marcuse,1981).

1 Psicóloga Clínica e Mestre em Educação pela Universidade Estadual de Maringá.
2 Profa. Adjunta do Depto. De Teoria e Prática da Educação e do Mestrado em Educação da Universidade Estadual de
Maringa

Essas transformações fizeram com que a família contemporânea ficasse submetida a uma dispersão ou falta de valores e referenciais que norteiam o modo de educar os filhos e reflete, em última análise, na perda da coesão comunitária. Atualmente há um grande acesso ao conhecimento e a informações teóricas no campo da Psicologia, que contribuem enormemente para a compreensão da qualidade das relações familiares e do desenvolvimento saudável da personalidade. Por outro lado, constata-se que a família, a escola e a sociedade parecem estar encontrando grandes dificuldades na educação de crianças e de jovens, o que se deve em grande parte, às inúmeras controvérsias a respeito das funções de cada uma dessas instâncias. Como resultado, encontra-se hoje um grande número de crianças e adolescentes com fortes dificuldades de adaptação social e escolar, o que aponta para graves sinais de enfermidades psicológicas, sociais e educacionais. A família, a escola e a sociedade vivem hoje, um momento bastante crítico que poderá desencadear um aumento das patologias mentais, ou como afirma Osório (1996, p.47), “(...) dar origem a novas formas de configurações familiares, como as que esboçam neste limiar do século XXI, adequando-se às demandas desse novo giro na espiral ascendente da evolução humana”.

O papel dos vínculos familiares no processo de construção da personalidade tem sido tema de interesse de vários segmentos da sociedade atual e objeto de estudo de psicólogos, psicopedagogos, sociólogos, educadores, entre outros. Cada vez mais é atribuída à família a responsabilidade pelos problemas da humanidade, bem como pela saúde e doença mental. O ser humano encontra-se a aproximadamente, cinco séculos da existência da civilização humana organizada sob o modelo familiar. De acordo com os diferentes momentos históricos, sua constituição foi se dando de forma singular a partir de diferentes referenciais que norteavam a educação dos filhos. Um retrospecto sobre a história da organização humana, sob forma de família, permite constatar que jamais a criança foi objeto de tantos estudos como tem sido na sociedade atual. O século XX, marcado pelo desenvolvimento tecnológico e científico, foi também sinalizado por uma preocupação com o desvendamento dos mistérios do desenvolvimento humano, sobretudo a partir das contribuições da Psicanálise (Martuscello,1992). Freud (1920) mostrou, entre outras contribuições, que a vida emocional do ser humano tem suas raízes na infância e os pais exercem no mundo emocional de seus filhos influências tanto benéficas quanto maléficas. Sabe-se que a subjetividade se constrói na relação com o outro, no campo do humano, dos afetos, das paixões, preferencialmente dentro de uma instituição à qual chamamos Família. Portanto, é através das interações iniciais do bebê com sua mãe e do valor afetivo desse vínculo que se formará o protótipo da relação entre o indivíduo e asociedade. Deste modo, as mudanças atuais na constituição, configuração efuncionamento familiar, irão necessariamente acarretar mudanças na subjetividade das pessoas.

A família se modifica através dos tempos, mas, em termos conceituais, é um sistema de vínculos afetivos onde deverá ocorrer o processo de humanização. A transformação histórica do contexto sócio-cultural resulta de um processo em constante evolução ao qual a estrutura familiar vai se moldando. No entanto, é importante considerar que por maiores que sejam as modificações na configuração familiar, essa instituição “permanece como unidade básica de crescimento e experiência, desempenho ou falha”(Ackermam,1980 p.29), contribuindo assim tanto para o desenvolvimento saudável quanto patológico de seus componentes. De acordo com Soifer (1982), a função da família é educar, o que pressupõe ensinar o cuidado e a manutenção da vida. A educação abrange a transmissão de valores que variam de acordo com a cultura e que são fundamentais para que se possa viver de forma comunitária. Aos pais cabe, ainda, a função de fornecer modelos de identificação que venham a contribuir para a formação da identidade da criança. Para que tal função se dê, énecessário que eles estejam, acima de tudo, presentes na vida dos filhos e que tenham disponibilidade de tempo para atender às suas necessidades.

O crescente aumento verificado na busca de entendimento e de saídas para o mal-estar eos conflitos humanos dentro do contexto familiar, levam a crer que como afirma Osório (1996, p.12),”(...) a família continua sendo percebida como a viga mestra de qualquer realinhamento no processo evolutivo do ser humano”. Portanto, há necessidade de um reposicionamento da função balizadora da família nos dias atuais. Repensá-la significa contextualizar, caracterizar as diferentes configurações que ela vem assumindo ao longo dos tempos e, sobretudo, analisar as suas influências no processo de desenvolvimento e de aprendizagem escolar da criança. Winnicott (1993), questiona se seria possível para o indivíduo atingir a maturidade fora do contexto familiar. Conclui em termos gerais que, o alcance da autonomia pressupõe uma relação familiar que ofereça o suporte afetivo necessário para o desenvolvimento de funções constitutivas que incluem a aprendizagem escolar.

Neste início do século XXI, com todo o progresso científico e a vivência em um mundo universalizado, a família sofreu várias transformações que, sem dúvida, trouxeram vantagens e desvantagens. A família contemporânea tem criado formas particulares de organização, não mais se limitando à família nuclear (pai, mãe e filhos dos mesmos pais), mas a uma forma distinta e decorrente dos tempos modernos, onde os casais se unem e se desunem por diversas vezes e passam a conviver ou não, com filhos, frutos de antigas relações conjugais e filhos que nascem de suas novas uniões. Ao considerar esses aspectos, faz-se necessário um olhar atento para a escola que, no mundo moderno, continua tendo o papel de transmitir um conhecimento ao qual se acrescenta a construção do processo de aprendizagem. Os professores, cada vez mais, vêm se deparando com alunos que apresentam dificuldades como desatenção, indisciplina, desprazer em aprender, dificuldades em tolerar frustrações e em postergar o prazer, que são pressupostos básicos para o crescimento e para a boa aprendizagem. Nesta perspectiva, Fernandes (1990) descreve o conceito de “modalidade de aprendizagem” como a maneira com que cada um aproxima-se do conhecimento. Afirma que tal modalidade se constrói através de um processo que ocorre desde o nascimento e implica na relação da criança com seus cuidadores dentro do espaço familiar e que refletirá na aprendizagem formal. Por outro lado, incrementada muitas vezes pelas expectativas familiares, a cultura do imediato, do mundo instantâneo ao lado da tecnologia, muda os conceitos de tempo, espaço, frustração, determina os objetivos e desejos dos homens, alterando as formas de aquisição da aprendizagem.

A cultura moderna tem favorecido a liberação dos impulsos agressivos e sexuais de forma direta e não sublimada. Caminha-se para o individualismo e para a competitividade sem limites, levando às últimas conseqüências a desconsideração pelo outro. Prevalece o prazer absoluto, contradizendo Freud (apud Levisky,1997) em sua argumentação de que a maturidade seria alcançada quando o indivíduo deixasse de guiar-se pelo “Princípio do Prazer Absoluto” e submetesse suas pulsões ao “Princípio da Realidade”.Marcuse (1975), retoma a idéia de Freud sobre a correlação entre as pulsões do homem e a cultura, na medida em que as pulsões devem ser desviadas de seus objetivos em prol da civilização. Em suas palavras, “a civilização começa quando o objetivo primário, isto é, a satisfação integral de necessidades, é abandonada” (p.75). Assim, sob a influência da realidade externa os instintos animais se convertem em humanos. Tais formulações destacam o caráter humanizante da sociedade, ainda que se tenha um preço alto a pagar pela restrição da liberdade pessoal, qual seja, a prevalência do “Princípio do Prazer” sobre o “Princípio da Realidade”. É sobre o“Princípio da Realidade” que o ser humano desenvolve sua razão, tornando possível examinar, comparar, ponderar, julgar discernir e escolher. Nasce então, um sujeito pensante, consciente, crítico e equipado para agir frente às imposições do mundo externo. No entanto, há um discurso social que restringe ao homem a possibilidade de ser, não havendo mais lugar para o erro, o sofrimento, a tristeza, a falibilidade, ou seja, para o que é da ordem do humano. Compromete-se assim, todo o processo de civilização, humanização e aprendizagem, culminando fatalmente em diferentes formas de violência.
A família é um sistema de vínculos afetivos em que o sujeito nasce com possibilidades de ser (biológica e psíquica), mas que só se concretizarão ao entrar em contato e agir com um semelhante.

O Ser só se humaniza, através de outro humano ( processo de identificação).

Aprender é uma atividade desejante e, para tanto, faz-se necessário que se acompanhe uma estrutura de personalidade razoavelmente madura, construída sob a égide de uma relação familiar saudável e segura. A aprendizagem ganha significado dentro do contexto familiar e social, ainda que a apropriação dos conteúdos seja individual. No entanto, acredita-se que o ambiente familiar estável contribui positivamente para o bom desempenho da criança na escola, embora não garanta seu sucesso, uma vez que este, depende de outros fatores que não exclusivamente os familiares. Vale lembrar as palavras de Gianetti (apud Levisky,1997 p.25) “mais do que a escola, a família é a principal responsável pela transmissão social de um sentido de valores que induza os mais jovens a desenvolver suas capacidades morais e cognitivas... nada substitui a presença dos pais que cooperem ativamente na criação dos filhos e valorizem o empenho escolar... A Família é a primeira, a menor e a mais importante escola”. Embora a sociedade forme em cada período, homens de que precisa, visando sempre a manutenção do poderio econômico e a educação formal somada a ela corrobore com a formação unidimensional do indivíduo, acredita-se que a família ainda possa ser pensada como o lugar possível para, através do resgate da intimidade e da afetividade, formar a criança como um sujeito crítico, desejante e, sobretudo, consciente de suas reais necessidades. Deste modo, talvez o homem possa se beneficiar dos recursos oferecidos pelos avanços tecnológicos e científicos sem ser expropriado em sua dimensão humana.

REFERÊNCIA:

ACKERMAN, H. Diagnóstico e Tratamento das Relações Familiares. Porto Alegre:Artes Médicas,1980
FERNÀNDEZ, A. A Inteligência Aprisionada. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990
FREUD, S. Além do Princípio do Prazer (1920). Rio de Janeiro: Imago, 1980
LEVISKY, D. Adolescência e Violência. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997
MARCUSE, H. Algumas implicações sociais da tecnologia moderna. Praga: revista de
estudos marxistas.São Paulo: Boitempo, 1957, n.1
MARCUSE, H. Idéias sobre uma teoria crítica da sociedade. Rio de Janeiro: Zahar, 1981
MARCUSE, H. Eros e Civilização. Rio de Janeiro: Zahar, 1975
MARTUSCELLO NETO, C. Família e Conflito Conjugal. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988
OSÓRIO, L.C. Família Hoje. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996
POSTER, M. Teoria Critica da Família. Rio de Janeiro: Zahar, 1979
SOIFER, R. Psicodinamismos da Família com Crianças. Petrópolis: Vozes, 1982
VIGOTSKY, L. S. A Formação Social da Mente.São Paulo: Martins Fontes, 1988
WINNICOTT, D. W. A Família e o Desenvolvimento Individual. São Paulo: Martins Fontes, 1997
WINNICOTT, D. W. Tudo começa em casa. São Paulo: Martins Fontes, 1999
WINNICOTT, D. W. Natureza Humana. Rio de Janeiro: Imago, 1990