30.11.08

Oktoberfest

Profa. Dra. Rita Amaral

Antropóloga do Núcleo de Antropologia Urbana da Universidade de São Paulo (USP)

Este texto faz parte da tese de Doutoramento em Antropologia Social de Rita Amaral, Festa à Brasileira - sentidos do festejar no país que "não é sério" defendida junto ao Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, no ano de 1998.
Introdução

Bebe, bebe, irmãozinho, bebe!
Deixe as preocupações em casa.
Evite as amarguras e evite a dor
e aí a vida será uma brincadeira!
Não devemos deixar de beber
o beber é que move o mundo,
e nem ter raiva daquele
que encomenda sua bebida.
Seja cerveja, vinho ou champanhe,
vamos beber sem nos gabar.
Pois já houve quem tomou champanhe
E depois não pôde pagar
(Canção da Oktoberfest)


A experiência brasileira da festa como linguagem e como "artefato" popular, como um modo de ação diante dos mais variados problemas e contextos, encontra expressão exemplar na Oktoberfest de Blumenau, Santa Catarina. Esta Oktoberfest brasileira é cheia de significados particulares e a compreensão de sua gênese pode ajudar a entender seus múltiplos sentidos e por que ela vem se tornando um modelo de festa no Sul do Brasil e em várias outras regiões brasileiras (Fishfest de Mato Grosso, a Cajufest de Fortaleza, e a própria Oktoberfest de Garanhuns, Pernambuco, para citar um exemplo curioso).

A Oktoberfest blumenauense surgiu em 1984. Mesmo assim, já faz parte do calendário turístico da Embratur como a segunda maior festa brasileira, sendo considerada pela população local como uma espécie de carnaval do Sul. Alguns catarinenses dizem mesmo:

Quem disse que carnaval sempre tem que ter samba e marchinha e ser em fevereiro? Se você for a Veneza, vai ficar espantada com as músicas do Carnaval de lá. A Oktoberfest é o Carnaval do Sul. (Max, 19 anos)

Considerando-se certos aspectos, de fato, pode-se pensar na Oktoberfest como um Carnaval, já que inclui elementos característicos deste, como as fantasias, os desfiles, os carros alegóricos, as festas de clube e de rua e representa um momento em que aquilo que os blumenauenses mais valorizam é incorporado aos desfiles nas ruas, do mesmo modo que acontece no Carnaval. Este modelo, inclusive, parece ser o modelo brasileiro de festa, reproduzindo-se freqüentemente tanto em festas religiosas como em festas profanas.

A história e os valores dos blumenauenses são encenados nas ruas de Blumenau do mesmo modo como a história e os valores do povo brasileiro são representados nas alegorias e enredos das escolas de samba do Rio de Janeiro e de São Paulo, pelos devotos do Círio de Nazaré e das festas do Divino Espírito Santo ou pelos “matutos” do São João de Caruaru.

A Oktoberfest de Blumenau foi um sonho acalentado durante anos pelos grupos originários da Alemanha, que ali viviam. Sempre se comentava como seria gratificante e importante realizar uma festa como a alemã, que acontece na Bavária, especialmente porque Blumenau já tinha toda a arquitetura condizente com o espírito da festa, além do gosto pela cerveja, herança alemã. Tanto pelo fabrico quanto pelo consumo (a maior parte dos blumenauenses sabem fabricar sua própria cerveja, embora poucos o façam atualmente). Este gosto pela cerveja introduziu a primeira indústria dela em Blumenau, inaugurada em 1858 por um dos colonos trazidos pelo Dr. Blumenau. Heinrich Mosang abriu sua cervejaria na casa que ainda hoje existe na rua São Paulo. Durante anos, entretanto, a Oktoberfest foi apenas um projeto, marcado pela vontade de reforçar a identidade alemã dos habitantes (Sasse, 1991).

O sucesso da Oktoberfest foi tamanho que Blumenau não só se recuperou física e economicamente, como também se converteu num evento tão associado à identidade da cidade que muitos folhetos turísticos substituem o nome de Blumenau por Oktoberfest. Graças ao volume de visitantes que a cidade passou a receber em função da festa, a economia se desenvolveu de forma equilibrada, harmônica e crescente. O padrão de vida da cidade subiu paralelamente. Existem, em Blumenau, segundo dados da prefeitura, automóveis na proporção de um para cada três habitantes — a taxa mais elevada do Brasil. Os blumenauenses se orgulham do fato de que em todo o município não existe uma só família que não seja proprietária da casa em que mora.

O sucesso do modelo festivo de Blumenau fez com que ele se convertesse num modelo que vem se disseminando por todo o país, como modo de incentivar o turismo e através dele concentrar recursos para financiar obras sociais, gerar empregos e fomentar indústrias.
Por trás da segunda maior festa da cerveja do mundo — depois da Oktoberfest de Munique, Alemanha — movimentam-se batalhões de pessoas para viabilizar a estrutura da festa. Se a prefeitura de Blumenau e a PROEB investem 2 milhões de dólares na Oktoberfest, as empresas patrocinadoras, como as quatro grandes cervejarias do Brasil (Antártica, Brahma, Kaiser e Skol), armam também uma gigantesca operação para apoiar o evento. São dezessete dias de festa seguidos, contra os cinco dias do Carnaval.

A marcante influência da cultura germânica em Blumenau se revela ao primeiro olhar: na arquitetura, no fenótipo do povo, nos hábitos, nos restaurantes, em tudo se revela um certo jeito europeu, do qual os blumenauenses muito se orgulham, embora se considerem profundamente brasileiros. Chalés de madeira envernizada, casas caiadas, telhados construídos para receber neve (que representam mais uma referência que uma necessidade), letras góticas nos anúncios e o idioma alemão, falado pelas ruas por muitos dos habitantes. Pode-se dizer que Blumenau se fez uma cidade brasileira sem ter perdido a “germanidade”. Daí o anseio por uma festa que representasse essa identidade e tudo de visão de mundo particular que significa. Uma festa que fizesse explodir numa tradução brasileira o orgulho de descender de alemães (Bonatti, 1992).

O destino, contudo, se encarregou de impulsionar o projeto. E impulsionou com as águas descontroladas das enchentes do rio Itajaí-Açu, em cujo vale se localiza Blumenau. Não era a primeira vez que acontecia (a primeira grande enchente aconteceu em 1895), mas em 1983 Blumenau foi quase totalmente destruída pelas águas do rio. Inundadas até os telhados, na vazante as casas eram apenas restos enlameados das até então belas casinhas com jeito europeu, caiadas e com cercas cuidadas, muitas flores e frontais de madeira envernizada. Demorou um bom tempo até que a cidade pudesse voltar a uma certa normalidade, com o apoio da prefeitura e do governo do Estado. Mas cada chuva se transformava em uma ameaça. Em 1984, antes mesmo que a cidade estivesse funcionando normalmente, uma nova enchente, de proporções maiores para uma cidade ainda em recuperação da enchente anterior, destruiu Blumenau. "Completamente", dizem alguns blumenauenses. "Menos a coragem do povo", dizem outros (Silva,1989; Sasse, 1991; Bonatti, 1992).

A festa como modo de ação

Sem muitas esperanças diante da catástrofe, o povo de Blumenau só via duas soluções: partir para sempre, abandonando a cidade que seus avós e tataravós idealizaram e construíram à mercê do rio, ou ficar e reconstruir tudo. Mas o desânimo era imenso e cada chuva se tornaria sinônimo de medo. Primeiro por causa da enchente do ano anterior, que consumira recursos que o município já não possuía, e depois pelos sérios obstáculos a serem ultrapassados, dos quais o maior parecia ser o abatimento moral dos blumenauenses. Era preciso arrecadar dinheiro rapidamente para reconstruir a cidade, pois os recursos da prefeitura e do Estado não seriam suficientes e demorariam muito a chegar.

Voltou-se, então, à velha fórmula de concentração e distribuição de bens do povo: a festa. Era necessário realizar uma festa para angariar recursos. Foi então que se resolveu colocar em prática o antigo projeto da Oktoberfest e, através dela, tentar revigorar o espírito de criação para a reconstrução da cidade; o mesmo espírito de luta e de coragem que imbuíra seus antepassados que ergueram Blumenau. Agora, os blumenauenses contemporâneos poderiam fazer parte dessa aventura, que estava recomeçando, dando-lhes a chance de também fazer parte da história de luta por um bom lugar para se viver e criar os filhos.

Muitos foram contra, pois além dos recursos serem mínimos e os espíritos estarem fatigados e desanimados, era agosto, e uma Oktoberfest que se preze deve ser realizada em outubro. Mesmo assim, a vontade de renascer da cidade falou mais alto e as mãos foram postas à obra. Segundo Marita Sasse (1991), apenas a perspectiva da alegria de ver realizada a "Oktoberfest de Blumenau" e a motivação de receber bem as visitas foi capaz de animar a população e incentivá-la a unir forças para se ajudar mutuamente e tirar a lama de dentro das casas, limpar móveis, consertar cercas, envernizar as madeiras novamente, caiar as casas, escovar as calçadas, até que não restassem marcas da destruição. Pelo menos não "tão" aparentes.

A idéia tomou conta dos grupos e a Secretaria de Turismo ofereceu apoio, chamando os empresários a participarem. As grandes cervejarias do Brasil foram contatadas e aceitaram patrocinar o evento. Evidentemente, o sul do Brasil estava mais do que qualificado, pela ascendência da população e pelos traços culturais todos, para realizar uma bela festa da cerveja. O começo do calor, vindo com a primavera, ajudava a secar a cidade, as lágrimas do povo, e a aumentar a sede. E tudo começara a florir, aumentando a esperança no renascimento de Blumenau (Sasse,1991; Bonatti, 1992).

As escolas ensaiaram suas fanfarras; o município sua banda. Elas deveriam animar a nova festa de Blumenau. Crianças, adolescentes, jovens, adultos e velhos deveriam participar, organizando o que pudessem. O esforço de cada um era necessário.
Foi construída, de madeira, no estilo camponês, uma carroça que, puxada por cavalos, levaria um imenso barril de chope pelas ruas da cidade, distribuindo gratuitamente canecas dele aos passantes. Para guiá-lo, foi eleito um popular personagem desenhado pelo cartunista local Luiz Cé desde 1979, o Vovô Chopão, que seria também conhecido, a partir de então, como símbolo da festa e dono do carro da cerveja (chamado de Bierwagen).

Vovô Chopão, o responsável oficial pela distribuição gratuita de chope durante os dias da festa, é o rei da folia, uma espécie de Momo germano-brasileiro. Ele, no entanto, não é destronado e nem "morre" no final da festa. Apenas se recolhe às páginas do jornalzinho onde nasceu. Durante os dezessete dias da festa, Vovô Chopão é encarnado por um cidadão blumenauense que o representa com alegria e fanfarronice e é o rei temporário da festa. Mas é "apenas um Vovô” e, como tal, não tem a malícia de seus pares, como o rei Momo. Sua principal função é a de presidir a distribuição gratuita do chope e animar os bailes (Sasse, 1991).

Em setembro de 1984 foi eleita a rainha da primavera de Blumenau, que foi encarregada de visitar as cidades vizinhas e o resto do país convidando para a primeira grande festa do chope no Brasil. O cartaz que ela levava por toda parte dizia: “Visite a Oktoberfest de Blumenau. Apesar de tudo”. Este apelo foi eficaz pois chamava para a festa e lembrava aos convidados a necessidade de solidariedade no difícil momento que a cidade atravessava.

Para alguns, parecia impossível e absurdo que Blumenau estivesse festejando alguma coisa. Por solidariedade ou curiosidade, pelo amor ao chope ou ainda motivada pela beleza demonstrada pelo exemplo da rainha da primavera, uma enorme quantidade de pessoas respondeu positivamente ao convite. A rainha da primavera recebeu, a partir de então, a função de Rainha da Festa e deve ser sempre “uma loirinha rosada” que se veste com o traje típico de camponesa alemã do século passado, todo bordado com flores vermelhas e brancas, cores de Blumenau. Ela é escolhida entre representantes dos Clubes de Caça e Tiro locais (Sasse, 1991). Sua missão principal é promover da Oktoberfest nos meses que a antecedem, percorrendo o país, e desfilar sua beleza pela cidade durante a festa. Esta rainha desfila diariamente pela cidade (do mesmo modo que o Vovô Chopão), rodeada de outras moças bonitas, as “princesas”, exibindo o padrão de beleza das mulheres do sul e as flores de Blumenau que lotam seu carro.

As donas de casa e de doceiras prepararam seus doces. E muito, muito chucrute, que acompanharia as salsichas e os marrecos assados, comida tradicional alemã. O objetivo disso era atrair muita gente que, vindo para comer, beber, dançar e cantar terminasse conhecendo e principalmente comprando os produtos da cidade. Os felpudos, como toalhas e roupões, os cristais e artigos de charutaria, principais produtos de Blumenau, assim como as camisetas (a indústria de malhas Hering é uma das principais indústrias de Blumenau), foram postos à venda, e os saldos da enchente foram vendidos por preços ínfimos. A primeira festa foi um sucesso, embora muitos comerciantes afirmem ter tido prejuízo. Em todo caso, muitos encaram a primeira festa como um investimento no que viria depois (Sasse, 1991).

Texto completo em:
http://www.educacaopublica.rj.gov.br/cultura/folclore/0016_02.html
Fonte: Educação Pública
Disponível em:
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