29.12.10

Biografia de Maomé

No centro de várias polêmicas no século 21, oIslamismo começou a nascer no ano 610 quando, diz a lenda, o anjo Gabriel apareceu para o árabe Abū al-Qāsim Muḥammad e contou-lhe que ele era o mensageiro de Deus (ou Alá, como o ser supremo é chamado pelos muçulmanos). Não era a primeira vez que Gabriel baixava na Terra para fazer esse tipo de anunciação. Conta-se que pouco mais de seis séculos antes, ele já havia estado por aqui para avisar à jovem e virgem Maria, moradora da cidade de Nazaré, na Galileia, que ela seria mãe do filho de Deus, cujo nome seria Jesus. E assim como Jesus, Muhammad, ou Maomé, tornou-se fundador e líder espiritual de uma das maiores religiões de todos os tempos.

Maomé
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Retrato de Maomé publicado em 1625 no livro "Histoire générale de la religion des turcs", deMichel Baudier
Mas na maior parte de sua vida, Maomé não imaginava que um dia teria ensinamentos e revelações que o fariam ser considerado um profeta e fundariam uma religião que após quatorze séculos de existência conta com mais de um bilhão de fiéis seguidores pelo mundo. Até os quarenta anos de idade, quando Gabriel apareceu e lhe contou a novidade, Maomé levou uma vida relativamente comum para um árabe naqueles tempos, após uma infância com alguns fatos trágicos. Ele não conheceu o pai, que morreu antes dele nascer, perdeu a mãe com seis anos e o avô, que passou a criá-lo, com oito. De extraordinário mesmo, apenas o fato dele ter se tornado um homem muito belo e generoso. Contam as narrativas que seu senso de justiça e lealdade o tornaram uma das pessoas mais procuradas para decidir sobre as disputas entre as moradores da cidade árabe de Meca, onde ele nasceu e viveu boa parte de sua vida.

A trajetória de Maomé até o momento da revelação feita pelo anjo Gabriel é cercada de mistérios e pouco se sabe sobre ela. Mas, assim como aconteceu com Jesus, esse período da vida do futuro profeta acabou preenchido com versões poéticas, místicas e lendárias criadas por seus seguidores. Uma dessas histórias, no entanto, teria sido narrada pelo próprio Maomé, que disse ter sido visitado quando ainda era criança por dois anjos que teriam purificado seu coração.

Islamismo
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Página do Alcorão,
o livro sagrado do Islamismo

Os ensinamentos e revelações de Maomé resultaram no Alcorão, o livro sagrado do Islamismo. Desde então, muita coisa boa e muita coisa ruim tem sido feita em nome do legado de Maomé. Mais uma vez à semelhança de Jesus, o nome de um profeta ou messias tem sido usado tanto para promover conforto espiritual, paz e caridade, como para guerrear em busca de almas, poder e da destruição dos "infiéis". Para alguns estudiosos, como a escritora britânica Karen Armstrong, especialista em religiões, há muita distorção e preconceito na visão ocidental sobre a figura de Maomé, um dos homens mais notáveis que já existiram, segundo ela. Para outros, como o historiador Paul Johnson, o núcleo da doutrina ensinada por Maomé resultou numa religião imperialista em que as únicas alternativas aos não-muçulmanos são converter-se ou morrer.

Para começar a tirar suas próprias conclusões sobre Maomé e seu legado, descubra, na próxima página, como foi sua vida desde o seu nascimento até os anos em que permaneceu em Meca, após o anjo Gabriel em forma de homem ter aparecido para ele.

O extremismo sagrado.

Os textos sagrados das três grandes religiões monoteístas - Judaísmo, Cristianismo e Islamismo - têm passagens que pregam a violência e a intolerância contra aqueles que não abraçam seu deus único. Passagens da Torá, parte mais sagrada das escrituras do Judaísmo, como a que conclama os israelitas a expulsar os cananeus da Terra Prometida, têm sido usada por judeus fundamentalistas para expulsar os palestinos e recusar qualquer acordo que envolva seus "territórios sagrados". O historiador de religiões Philip Jenkins, da Penn State University, numa análise comparativa entre a Bíblia cristã e o Alcorão concluiu que o livro sagrado do Cristianismo tem passagens mais violentas e intolerantes do que o texto sagrado feito a partir dos ensinamentos de Maomé. Para o historiador, no entanto, com o passar dos anos, a agressividade e intolerância nas religiões judaico-cristãs assumiram um sentido figurado e expressões como “aniquilar o inimigo” passaram a significar combater os próprios pecados. A escritora Karen Armstrong afirma que a vida de Maomé é a trajetória de um pacifista e que fundamentalistas islâmicos ao usarem a ideia de "guerra santa" têm distorcido por completo o significado de sua vida.

Nascimento de um profeta.

Maomé provavelmente nasceu em Meca no ano 570. Seu pai morreu antes dele nascer e ele foi criado pela mãe até os seis anos de idade, quando ela também faleceu. Quando ainda era um bebê, ele foi enviado por sua mãe para passar alguns anos no deserto, longe da vida na cidade, um costume das grandes famílias árabes daqueles tempos. Acreditava-se que esse tempo no deserto levava a criança a desenvolver a habilidade da auto-disciplina, a independência e a nobreza do caráter, além de prepará-la para dominar a arte da oratória devido à convivência com a eloquência dos beduínos.

As tradições islâmicas contam que durante sua infância no deserto, longe da mãe, Maomé teria sido visitado por dois anjos com aparência de homens que teriam aberto seu peito e purificado seu coração com algo parecido com neve. Essa narrativa alimenta a crença islâmica de que que Deus purificou o profeta e o protegeu de qualquer enfermidade. Tal acontecimento e uma estranha mancha branca que tinha na pele das costas foram interpretados como sinais de que Maomé era uma criança especial e ele foi mandado de volta para Meca. Órfão, após a morte da mãe, ele viveu até os oito anos com o avô e, quando este morreu, Maomé ficou aos cuidados de um tio.

Conta-se que a criança tornou-se com o passar dos anos um jovem belo e com um caráter generoso. Seus senso de justiça e sua lealdade o fizeram ser procurado pelas pessoas que viviam na cidade para que ele arbitrasse as disputas existentes entre elas. Nessa época, Maomé ficou conhecido entre os habitantes de Meca como "O Honesto" ou "O Confiável". Essas qualidade provavelmente contribuíram para que aos 25 anos de idade ele recebesse uma proposta de casamento vinda de Khadījah bint al-Khuwaylid, uma rica mulher de Meca, quinze anos mais velha do que ele e cujos negócios Maomé tomava conta. Eles tiveram seis filhos, dois homens, que morreram jovens, e quatro mulheres. Apesar da poligamia ser comum e permitida, Maomé não teve outra esposa enquanto Khadījah esteve viva.

Maomé
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Ilustração mostrando a chegada de Maomé a Meca ou Medina
Após o casamento, Maomé teria levado uma vida próspera e aos 35 anos de idade era uma das figuras mais respeitadas em Meca. Maomé retirava-se periodicamente para o deserto para orar e meditar. Foi numa dessas meditações numa caverna, em uma montanha próxima a Meca, que Maomé teria sido visitado por um homem que lhe teria dito: "você é um mensageiro de Deus e eu sou Gabriel". Pensando estar possuído por demônios, ele fugiu montanha abaixo, mas ao olhar para cima viu a figura enorme de um ser celestial cobrindo quase todo o céu, que havia se tornado verde.

Abalado pela revelação, Maomé consultou um primo de sua esposa, profundo conhecedor dos mistérios religiosos, que confirmou a Maomé que ele era o escolhido por Deus. Desde então e durante 23 anos ocorreu o processo de revelações que resultou no Alcorão. Quando tudo começou Maomé tinha 40 anos de idade e era um homem iletrado. Ele teria ouvido as revelações e as transmitidos oralmente aos seus primeiros seguidores, que as anotaram e as transformaram no livro sagrado do Islamismo.

Aos poucos as pessoas em torno de Maomé em Meca aderiram à nova fé. Além dos familiares e amigos, algumas figuras importantes da cidade também abraçaram o Islã. Mas a maior parte das famílias influentes rejeitaram a ideia de um deus único e a oposição muçulmana à idolatria. Para aqueles especialmente ligados ao comércio, a nova religião proposta por Maomé prejudicaria seus negócios, principalmente o comércio com os peregrinos de vários tribos árabes que tinham Meca como o centro do culto religioso de seus vários ídolos. Na mesma proporção que crescia o número de muçulmanos, crescia a oposição a Maomé e sua religião monoteísta na cidade. Enfrentando cada vez mais dificuldades para levar adiante sua missão e temendo pela vida de seus seguidores, Maomé permitiu que muitos deles partissem para a Abissínia (atual Etiópia).

Nessa época, teria acontecido um dos episódios mais polêmicos do Islamismo. Segundo algumas fontes islâmicas e pesquisadores ocidentais, há uma narrativa de que enquanto Maomé recitava os versos do capítulo 53 do Alcorão, Satanás teria inserido dois curtos versos em sua fala. O anjo Gabriel teria então aparecido e falado a Maomé que esses versos não haviam sido revelados por Deus, mas sim eram o resultado de uma intervenção diabólica. Durante séculos essa versão que poderia colocar em dúvida a ideia de que o Alcorão é a palavra de Deus, foi rejeitada pelos muçulmanos e só voltou à tona com a publicação do polêmico romance "Versos Satânicos", do escritor Salman Rushdie, nos anos 1980.

O ano de 619 é conhecido como o "ano da tristeza de Maomé", pois morreram sua esposa e o tio com quem passou boa parte de sua vida e que era seu grande protetor, principalmente contra os clãs que tinham outros ídolos e não aceitavam a pregação monoteísta de Maomé. Depois disso, ele só permaneceria em Meca mais alguns anos, mas foi nesse período que aconteceu uma das mais importantes experiências espirituais de sua vida.

Em nome de Maomé.

Seja em nome de Jesus ou de Maomé, muitos atos de violência e intolerância têm sido praticados ao longo da História. Em relação ao profeta muçulmano, um dos mais conhecidos desses atos foi a fatwa (decisão religiosa ou legal no Islamismo) emitida em 1989 pelo aiatolá Khomeini, então líder do Irã, conclamando todos os muçulmanos a assassinar o escritor Salman Rushdie, por ele ter apresentado um retrato considerado blasfemo de Maomé em seu livro "Versos Satânicos". Outro exemplo de violência e intolerância em nome de Maomé ocorreu em 2 de janeiro de 2010, quando um somali que teria relações com o terrorismo islâmico, segundo a polícia dinamarquesa, tentou assassinar o cartunista Kurt Westergaard, autor de uma série de charges sobre Maomé, publicadas em 2005 e que geraram fortes protestos dos muçulmanos em várias partes do mundo com um saldo de várias mortes. As caricaturas de Maomé levaram vários países muçulmanos a propor, sem sucesso, à ONU que a difamação religiosa passasse a ser considerada "violação aos direitos humanos". Outra caricatura de Maomé, publicada em 2007 e feita pelo sueco Lars Vilks, que desenhou o profeta no corpo de um cachorro, teria sido um dos motivos de dois atentados terroristas em Estocolmo em 11 de dezembro de 2010. Parte dos muçulmanos considera que qualquer representação gráfica do profeta é uma ofensa a sua religião.


Maomé: a suprema experiência e a vida em Medina

Numa das fases mais difíceis de sua vida, após a morte de sua esposa e do tio que cuidara dele a maior parte da infância e juventude e quando a oposição a sua pregação crescia em Meca a ponto de ameaçar a sua vida, Maomé teria vivenciado a experiência espiritual mais importante de sua vida, a "miraj".

Segundo as tradicionais narativas islâmicas, nesse período, durante uma de suas visitas noturnas ao santuário de Caaba, Maomé teria adormecido e teria sido levado pelo anjo Gabriel até Jerusalém, na rocha onde Abraão, o primeiro patriarca hebreu - reverenciado pelas três grandes religiões monoteístas: Judaísmo, Cristianismo e Islamismo -, teria oferecido o sacrifício de seu próprio filho. A partir dessa rocha, eles teriam ascendido aos céus. Gabriel teria subido até um determinado ponto, pois suas asas queimariam se ele fosse adiante, e Maomé seguiu sozinho até ficar na presença de um dos sinais de Deus (afinal, nas tradições místicas, nenhum homem pode ver Deus e continuar a viver), onde ele recebeu o supremo conhecimento.

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Cúpula da Rocha em Jerusalém, um dos lugares mais sagrados do Islamismo
Foi nesse episódio que, segundo Karen Armstrong, no livro "Maomé: uma biografia do Profeta" (Companhia das Letras, 2002), Deus disse a Maomé que os muçulmanos deveriam orar cinquenta vezes por dia. Por sugestão de Moisés (Maomé teria encontrado Jesus e Moisés nessa sua ascenção aos céus), Maomé teria voltado várias vezes para negociar com Deus uma redução no número de orações até chegar a um décimo do número inicial. Desde então, os muçulmanos oram cinco vezes por dia. Os muçulmanos tradicionais acreditam que a ascensão de Maomé até Deus não foi somente espiritual mas corporal também, assim como teria sido a de Jesus na ressurreição. Alguns estudiosos do Islã, no entanto, consideram o relato como a descrição de uma ascensão espiritual ou uma visão.

Após essa experiência o desejo de Maomé de espalhar a mensagem do Islã aumentou ainda mais. Enquanto isso, seu poder de liderança e senso de justiça tornavam-se cada vez mais conhecidos fora de Meca. Em 621, ele foi convidado a tornar-se líder da cidade de Yathrib e, no ano seguinte, ele e seus seguidores para lá partiram, pouco antes de sua casa em Meca ser atacada. Maomé chegou em Yathrib em 25 de setembro de 622 e a cidade foi então renomeada para "Cidade do Profeta", ou Medina. Lá ele definitivamente estabeleceu o Islã como um sistema religioso e social e nas cercanias da cidade ordenou a construção do primeiro templo da nova religião, que seria chamada de Mesquita do Profeta e é onde está sua tumba.

Rapidamente os habitantes árabes de Medina aderiram ao Islamismo. Apesar da esperança de Maomé de que outras tribos, como as da comunidade judaica da cidade, aceitassem ele como profeta e aderissem a sua religião, isso não aconteceu. Estabelecida uma comunidade islâmica, ele decidiu então desenvolver uma constituição para Medina, com regras que definiram as relações entre os vários grupos sociais e classes econômicas, baseada em seus ideais de justiça social, apesar delas não romperem completamente com o tribalismo e manterem certas práticas como a vingança como sinal de virtude e de obrigação social e religiosa dos muçulmanos. Armstrong considera que a manutenção dessas práticas se deve ao fato de Maomé ter sido também um chefe de Estado e ter a necessidade de lidar com a manutenção da ordem pública.

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Mesquita em Medina, na Arábia Saudita

Nessa época, o Islã se define religiosamente como um retorno ao monoteísmo primordial propagado por Abraão. Para alguns historiadores, o Islamismo naquele momento se configurou como uma teocracia liderada por Maomé, enquanto outros consideram que ele procurou se estabelecer como um sistema governado por Leis Divinas em que Maomé era seu executor. Até sua morte em 6 de junho de 632, Maomé além de governar os muçulmanos, ser o juiz e intérprete supremo das leis em Medina e liderar um exército de dez mil soldados que conquistou Meca, continuou a ser o canal para as revelações contidas no Alcorão.

Segundo seus biógrafos, muitas das decisões de Maomé, como a de expulsar e massacrar as tribos judaicas, não foram inspiradas nas palavras de Deus. Elas foram atitudes políticas e estratégicas para consolidar a nova religião. Os caminhos escolhidos por Maomé e seus seguidores foram o de reformar uma sociedade árabe corrupta, exploradora do seu povo e cheia de derramamentos de sangue entre suas tribos. O Islã buscou avanços morais e espirituais e as atitudes políticas de Maomé e a legislação social que ele legou ao mundo árabe almejavam isso. Com o Islamismo, Maomé procurou mostrar ao seu povo que em vez de pertencerem a tribos distintas eles formavam uma única comunidade e que tinham um único Deus.

Fontes:
ARMSTRONG. Karen. Maomé: biografia de um Profeta. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
BRITANNICA ENCYCLOPEDIA ONLINE
HAYKAL, Muhammad Husayn. The Life of Muhammad. Java: Islamic Book Trust, 2008.