22.8.13

A INVENÇÃO DA ROUPA

Durante o Paleolítico, através da manipulação de caules e plantas, o homem inventou uma das mais fantásticas descobertas da história: a roupa. Através do desenvolvimento milenar da confecção de fios compridos e resistentes a partir de caules e plantas, as roupas protegeram a humanidade em ambientes de extremo frio e tornaram-se uma poderosa ferramenta para a construção da identidade humana, ratificando valores e crenças perante os grupos sociais e provando que o vestuário é parte intrínseca de cada modo de vida.


Padrões geométricos tradicionais da região da Ásia Central - Fonte: A História Mundial da Roupa, de Patricia Anawalt (Senac, 2011)

As estampas do traje do sentinela da cidade de Susa do séc. 6 parecem ter sido tecidas através da técnica de tapeçaria

A manipulação de caules e plantas durante a Idade da Pedra Lascada resultaria em uma descoberta que revolucionaria a humanidade: a roupa. Confeccionadas a partir de fibras vegetais, as primeiras roupas desenvolvidas pelo homem não tinham nenhuma relação com aquecimento ou pudor, e sim com a sinalização de um estágio de vida, especialmente o início da fertilidade e/ou casamento. Em A História Mundial da Roupa (Senac, 2011), a historiadora Patricia Riff Anawalt comenta que há indícios de que as representações abstratas de figuras humanas da arte rupestre do Paleolítico (período em que o homem registrou as pinturas e gravuras mais fantásticas da história humana) tenham servido para ilustrar linhagens genealógicas. A evidência mais antiga de roupa confeccionada em fibra vegetal data de 6.500 a.C. e foi encontrada na caverna Nahal Nemar, em Israel: um saco de linho não tecido, emaranhado com agulha e contendo botões de pedra, que provavelmente indicaria ser um chapéu cerimonial. "A função aparente era anunciar a idade da pessoa", completa Anawalt.

Linhagens genealógicas seriam representadas em figuras abstratas humanas

Linhagens genealógicas seriam representadas em figuras abstratas humanas

Motivos bordados da Europa oriental - Fonte: A História Mundial da Roupa, de Patricia Anawalt (Senac, 2011)

Iconografia de tecido de tapeçaria do Peru, que retrata atividades religiosas dos habitantes - Fonte: A História Mundial da Roupa, de Patricia Anawalt (Senac, 2011)

Há 50 mil anos atrás, com a chegada do homem moderno (Homo sapiens) do Oriente à Europa, o Homo neanderthalensis desapareceu em apenas alguns milhares de anos. A população européia diminuiu drasticamente com a Era do Gelo que ocorreria em seguida. Durante o período em que os grupos humanos foram se recompondo gradativamente foram realizadas as maiores inovações culturais, incluindo o desenvolvimento das primeiras roupas modernas.

Os períodos de glaciação contribuíram com profundo impacto na atividade humana: mais que uma necessidade de adornar-se para o grupo e sinalizar os estágios de vida, agora tornava-se vital o desenvolvimento de roupas grossas para proteção dos corpos do ambiente extremamente frio. O uso de fibras têxteis teria começado há cerca de 20 a 30 mil anos, quando os humanos descobriram como criar fios longos e resistentes a partir de caules curtos e fracos das plantas. A partir daí seriam produzidas as primeiras peças de roupa do mundo, incluindo saias de corda franjadas.

Chapéus de diferente tribos da Mongólia - Fonte: A História Mundial da Roupa, de Patricia Anawalt (Senac, 2011)

Ao longo de milênios, uma grande variedade de fibras vegetais foi utilizada em todo o mundo para produzir o tecido. No Oriente Médio, a principal fibra para confecção era o linho; já em outras regiões de clima temperado ao norte do Oriente Médio, o cânhamo era a fibra mais utilizada. O algodão, que já era conhecido no norte indiano antes de 3.000 a.C., espalhou-se para o Mediterrâneo apenas em 700 a.C., com a chegada de carneiros à Mesopotâmia, que anunciou uma mudança na história do vestuário.

Conjunto de casamento da Macedônia do século 20, adornado com losangos bordados em lã que fazem associação direta à fertilidade

Tecelã e tear de tensão dorsal em ilha de Flores, no sudeste asiático - Fonte: A História Mundial da Roupa, de Patricia Anawalt (Senac, 2011)

O primeiro indício concreto de tecido da Mesopotâmia foi encontrado em Jarmo, no Iraque, em 7.000 a.C. Outro traje de tecido simples datado do mesmo ano foi encontrado no sudeste da Turquia, comprovando que a população daquela região já possuía algum domínio na técnica de tecelagem. Por volta de 4.000 a.C, com a chegada e evolução dos carneiros lanosos na região da Mesopotâmia, houve um avanço representativo no desenvolvimento de tecidos e roupas, em grande parte pela possibilidade de se tingir a lã com cores vivas.

Segundo Patricia Anawalt, os trajes drapeados à moda suméria constituíram o padrão de vestuário na Mesopotâmia por um longo período; "já as cores e estampas dos tecidos tornaram-se progressivamente luxuosas. As roupas eram tecidas num tear horizontal apoiado no chão, usando fios de lã ovina, pêlo caprino ou, em menor escala, linho. O pêlo caprino era aparentemente usado na fabricação de cordas, cobertores e camas; o linho era usado para fazer cobertas e cortinas de templos, trajes sacerdotais, lençóis, representações do vestuário de divindades, e tecidos utilizados em rituais médicos e outras cerimônias."

Poncho masculino navajo de estilo clássico - Fonte: A História Mundial da Roupa, de Patricia Anawalt (Senac, 2011)

Colete infantil norte-americano decorado com amuletos na forma de lagartos - Fonte: A História Mundial da Roupa, de Patricia Anawalt (Senac, 2011)

Mulher da tribo Ndebele vestindo um avental de contas com motivo tradicional africano - Fonte: A História Mundial da Roupa, de Patricia Anawalt (Senac, 2011)

Chefe ganês vestindo tecido cerimonial com insígnias douradas - Fonte: A História Mundial da Roupa, de Patricia Anawalt (Senac, 2011)

Em relação ao vestuário básico masculino, os registros deixados pelos antigos sumérios incluem duas categorias de roupas. A primeira parece ser de vestuário de ritual feitos com pele animal; a segunda era o traje básico: um longo retângulo de tecido de lã franjado enrolado no torso (com as extremidades sobrepostas) e uma das suas extremidades drapejadas sobre o ombro esquerdo, deixando o braço livre. Ao longo dos séculos, os mesopotâmios da elite passaram a usar longas túnicas de mangas curtas, que eram consideradas um sinal de status superior. A condição social do indivíduo era refletida através do comprimento das túnicas de tecidos franjados e da riqueza de ornamentação, quase sempre com representações de deuses. Já o traje básico feminino durante o Antigo Império Egípcio era um vestido tubo, longo e justo, sustentado por alças largas.

No século 16 a.C., a túnica de mangas curtas surgiu como um novo tipo de vestimenta, como é o caso da Estátua do Novo Império da tumba de Meryt e seu marido, Maya, tesoureiro nos reinos dos faraós Tutancâmon e Horemheb (imagem abaixo). Assim como o vestuário masculino, os trajes femininos também permaneceram simples, acentuando a quadratura dos ombros, a finura da cintura e quadris e o alongamento do corpo. Ao longo da extensa história do Egito Antigo, todas as mulheres, homens e crianças usavam uma tanga circular presa ao corpo com cordões.

Estátua do Novo Império de Meryt e seu marido Maya, circa 1319-1292 a.C.

Componente dos trajes sumérios, os penteados nas figuras masculinas eram volumosos, partindo do meio e caindo até o peito em grossos cachos, além de barbas pesadas e retangulares. Segundo Anawalt, "os registros mais antigos indicam que os homens egípcios deixavam crescer a barba somente no queixo. Essa barba era frisada e tingida (às vezes com hena) e ocasionalmente trançada com fios de ouro. (...) Desde os tempos mais antigos, tanto homens como as mulheres das classes altas egípcias usavam volumosas perucas ou toucas de cabelo falso. Serviam não apenas como adorno, mas também para proteger a cabeça contra o sol forte, cumprindo assim a função de um chapéu. As perucas eram penteadas de várias maneiras, cada uma com características de um período; de modo geral, tornaram-se progressivamente mais compridas e os arranjos de cachos e tranças - fixados com cera de abelha - mais complexos."

Busto da rainha Nefertiti vestindo uma coroa alta, circa 1379 a.C.

Desde os tempos mais antigos, tanto os homens quanto as mulheres das altas classes egípcias usavam volumosas perucas ou toucas de cabelo falso. Não serviam apenas como adorno: servindo para proteção da cabeça contra o sol forte tornavam-se uma espécie de chapéu feminino. Tudo indica que as mulheres sumérias usavam o cabelo partido ao meio de maneira a emoldurar o rosto. Alguns milênios mais tarde, as damas da corte assíria ainda adotavam um estilo de penteado muito similar, embora adornado luxuosamente por elegantes distintivos reais, como é o caso do diadema da rainha Puabi (imagem abaixo). Várias eram as peças componentes do penteado real da rainha suméria: uma fita dourada enrolada diversas vezes em volta da cabeça; uma faixa de lápis-lazúli na testa, contas de cornalina (variedade vermelha do quartzo) sustentando argolas de ouro; contas de cornalina enfeitando as pontas de folhas douradas de álamo e salgueiro; um ornamento de cabelo dourado na parte de trás da cabeça, decorado com sete rosetas. Anawalt complementa: "O esplendor desse adorno é realçado por um enorme par de brincos dourados, sustentados por quatro espirais de ouro pendendo do contorno do cabelo. A rainha suméria foi enterrada com 74 criados, muitos dos quais também usavam adornos na cabeça, mas nada que se comparasse ao dela."

Distintivo real da rainha suméria Puabi, composto por fitas douradas e folhas de álamo e salgueiro e faixas de lápis-lazúli, circa 2.500 a.C.

Sandálias do Novo Império, no refinado estilo de relevo entalhado - Fonte: A História Mundial da Roupa, de Patricia Anawalt (Senac, 2011)

Botas confeccionadas com pêlo de foca e decoradas com tiras de pêlo - Fonte: A História Mundial da Roupa, de Patricia Anawalt (Senac, 2011)

Outro elemento decisivo de agasalho foi o calçado. As sandálias, que surgiram em torno de 814 a.C., eram amarradas no tornozelo e com o dedão preso por um anel. No Egito, homens e mulheres usavam sandália confeccionadas em palha e folhas de palmeira ou papiro trançadas à mão. As sandálias de couro raramente eram usadas, mas sandálias elegantes aparecem com frequência nas figuras retratadas durante o período Amarna (capital do Antigo Egito durante o reinado do faraó Amenófis IV). Já na tumba de Tutancâmon foram encontrados quase cem calçados, desde peças de uso diário até os itens mais extravagantes. O notável par de sandálias (imagem abaixo) pertenceu ao rei Tutancâmon e nunca teria sido usado. Combinando madeira com casca, couro verde e folhas douradas, retratam prisioneiros asiáticos e núbios amarrados, além de oito arcos que simbolizavam inimigos tradicionais do Egito. A escolha da decoração seria uma forma metafórica de "pisar" ininterruptamente em seus adversários.

Par de sandálias do rei Tutancâmon. O calçado foi confeccionado em casca, couro verde e folhas douradas (Foto: Linda De Volder)

Câmara Cascudo, em Civilização e Cultura (Global, 2004) ratifica o calçado como um outro item relevante de agasalho humano. "Agasalho-defesa que possibilitou uma libertação das condições ásperas do terreno. Facilitou e ampliou o autotransporte humano. Com o pé calçado, as pedras agudas, areias ardentes e soltas, espinhais, lama, neve, o gelo escorregadio e liso foram quotidianamente vencidos e a distância superada." E completa: "O sapato, imagem do pé, simbolizava o corpo e sua situação no solo teve expressão de magia simpática."

Segundo Cascudo, foi agasalhando-se que homem passou sucessivamente a valorizar a defesa exterior, tornando-se emblemática, simbólica, política. Para o antropólogo, classes, funções e atos estariam ligados a uma exigência de plano da indumentária. Seja para funcionar como um indicativo de fertilidade ou casamento, sinalizar os estágios de vida (que sobrevive ainda hoje na arte tribal de certos grupos étnicos isolados), hierarquizar dos valores e crenças de cada grupo social; ou como item indispensável no combate às baixas temperaturas, a roupa sempre atuou no âmbito da preservação e proteção humana. Ao longo dos tempos, a indumentária (incluindo sapatos e chapéus) refletiu as influências entre as diversas culturas através dos diversos modos de ornamentação, provando que o vestuário é parte intrínseca de cada modo de vida.

Fonte: http://lounge.obviousmag.org/anna_anjos/2013/05/a-invencao-da-roupa.html