23.9.13

As crises da igreja católica - Habemus crisem


A renúncia de Bento XVI é mais um episódio da longa história do papado. Em 2 mil anos, a Igreja encarou assassinatos, sequestros, invasões, cismas e imoralidades - agora está diante de escândalos financeiros e casos de pedofilia

Texto Tiago Cordeiro


Nunca aconteceu nada igual nos últimos seis séculos. Dos 266 homens promovidos a representantes diretos de Deus na Terra, somente 14 deixaram o cargo com vida. Ao anunciar ao mundo sua renúncia, Joseph Ratzinger, o papa Bento XVI, sabia bem o alcance de sua decisão. "Depois de ter examinado repetidamente a minha consciência diante de Deus, cheguei à certeza de que as minhas forças, devido à idade avançada, já não são idôneas para exercer adequadamente o ministério petrino", afirmou em latim, diante de um grupo de religiosos aturdidos.

"Ele não aguentou os escândalos de pedofilia, as divisões políticas internas e as graves suspeitas de irregularidades financeiras", diz o pesquisador Anura Guruge, autor de The Next Pope. "O Vaticano está em crise mais uma vez. Mas essa situação não é nada perto de outros problemas que a Igreja já enfrentou no passado." Conflitos, de fato, acompanham o cristianismo desde sua origem. "Ao longo da história, as crises do Vaticano são causadas principalmente por três motivos: divergências internas, que provocam rompimentos, como o cisma com Bizâncio e o de Avignon; falta de seriedade e ética de seus líderes, o que facilita os casos de corrupção; e incapacidade para lidar com pressões externas, algo que abalou a Igreja, por exemplo, durante o escândalo do Holocausto", afirma a historiadora Brenda Ralph Lewis, autora de The Popes: Vice, Murder and Corruption in the Vatican (Os papas: vício, morte e corrupção no Vaticano, sem tradução).

Nas próximas páginas, você vai conhecer outros momentos em que o cristianismo enfrentou grandes turbulências. "A crise vai ser superada, e muitas outras virão", diz Donald Prudlo, da Universidade do Alabama. "Estamos falando da instituição mais antiga e resistente do mundo."



Divisões e cismas

As confusões no catolicismo estão em sua origem. Os cristãos nem se preocuparam em se organizar - Jesus tinha prometido que voltaria e eles achavam que seria logo. "Nas primeiras décadas, a única reunião de encontro entre os fiéis era um jantar semanal para relembrar a Santa Ceia", diz o medievalista Roger Collins.

À medida que o tempo passava, o volume de fiéis crescia e a perseguição dos romanos aumentava, foi preciso adotar uma série de medidas práticas. Cada uma das principais cidades do império ganhou um bispo, que chefiava os seguidores. Foi só com o passar do tempo, aliás, que o bispo de Roma se tornou mais importante do que os colegas.

Outro problema era unificar doutrinas. No século 4, pelo menos cinco grupos defendiam linhas diferentes e tinham bispos influentes. Dois deles, em especial, foram derrotados de-pois de muito trabalho. Para os marcionistas, seguidores de Marcião de Sinope (c.110-160), Jesus nunca teve um corpo físico e o judaísmo não deveria ser a base da nova religião. Para os arianos, seguidores do presbítero Ário (256-336), de Alexandria, não havia Santíssima Trindade: Jesus era filho de Deus, mas não parte dele. A linha de pensamento que conhecemos hoje venceu a disputa depois de décadas de conflitos.

O primeiro grande concílio, em Niceia, em 325, era tão controlado pelos arianos que o bispo de Roma, Silvestre I, se recusou a comparecer. Mas, sob o comando do imperador romano Teodósio I (347-395), os arianos foram derrotados tempos depois. A transformação do bispo romano em papa (ou pai) da Igreja desagradou os religiosos de Constantinopla. Desde a queda do Império Romano, em 476, eles é que estavam no comando. O cisma mesmo, que criou a Igreja Cristã Ortodoxa, só foi formalizado no século 11. Mas, ao longo desses 1 100 anos desde a morte de Jesus, foram muitas as brigas.

Antipapas europeus

As rixas entre a Igreja de Roma e a de Constantinopla eram constantes. Os bispos da cidade fundada pelo primeiro imperador cristão, Constantino, se ressentiam por não ter voz em decisões importantes sobre rituais ou normas de conduta, como o celibato (que a Igreja oriental não aceita). Os dois bispados romperam entre 482 e 519 e entre 866 e 879, mas acabaram se reconciliando. A falta de seriedade dos papas da pornocracia (veja na pág. 32) complicou as relações com os bispos orientais. Em 1054, o papa Leão IX tentou reagir excomungando o patriarca de Constantinopla da época, Cerulário, que enviou sua própria carta de excomunhão para Roma. Era o rompimento definitivo. Cerulário declarou fundada a Igreja Ortodoxa, enquanto Leão declarou que os cristãos de Roma eram membros da única fé, eterna e universal, católica (expressão que vem do grego katholikos). A excomunhão mútua não foi levada a sério na época, já que não era a primeira vez que a Igreja das duas cidades rompia. A situação da Europa e do Oriente, as Cruzadas e a expansão do Islã radicalizaram a separação, que parecia temporária. As duas Igrejas nunca mais reataram.

Durante 39 anos, a Igreja esteve rachada dentro da Europa. O cristianismo ocidental teve dois papas simultâneos - por um curto período, eles chegaram a ser três. Não que os antipapas fossem novidade. Ao longo da história, foram mais de 30, começando cedo, com Hipólito de Roma, em 235. Era comum que cardeais insatisfeitos se declarassem papas e levassem consigo parte do clero. Também não era raro que, em períodos mais turbulentos, os chefes da Igreja se mudassem de Roma. Papas governaram de outras cidades italianas, como Viterbo, Orvieto e Perugia. Pelo menos três deles, Urbano IV (1200-1264), Clemente IV, (?-1268) e Celestino V (c.1260-1314), nunca estiveram em Roma. Mas o cisma de Avignon era um problema muito maior. Dessa vez, a França quase virou a sede do comando da Igreja.

A eleição de Urbano II, papa entre 1088 e 1099, revoltou os cardeais franceses, que ques-tionaram sua personalidade. Diante do impasse, elegeram Roberto de Geneva, que assumiu com o nome Clemente VII e se declarou papa - hoje considerado antipapa. Cada lado arregimentou nobres de diferentes países e o cisma se estabeleceu. Papas e antipapas se seguiram por razões políticas - diferentemente do cisma com o Oriente, não havia disputas teológicas em jogo.

Em 1409, um concílio em Pisa resolveu que os dois papas não tinham autoridade alguma e elegeram um terceiro. Mas ninguém renunciou, e a Igreja passou a ter três líderes. Foi preciso que um antipapa, João XXIII, fosse preso e renunciasse, outro, Bento XIII, fosse deposto, e o papa oficial, Gregório XII, renunciasse para que, em 11 de novembro de 1417, Martinho V (1368-1431) colocasse ordem no Vaticano.

Pornocracia vaticana

Desde o ano 550, o papa não é considerado santo assim que morre, mas precisa ser submetido ao processo tradicional de canonização. Faz sentido - tanto é que, dos 266 papas, apenas 78 são considerados santos. Muitos estavam bem longe disso e chegaram a criar uma tradição de costumes pouco cristãos dentro da Igreja. Em dois períodos em especial, os sumos pontífices transformaram a Santa Sé num reino bem terreno - e dos mais libertinos. "Quando se consolidou como uma força influente, o papado caiu nas mãos de famílias nobres que dominavam a Itália e queriam usar a influência da religião para expandir seu poder", afirma a historiadora Brenda Ralph Lewis.

A baixaria começou no século 10, o período conhecido, dentro da própria Igreja, como saeculum obscurum - ou, como alguns historiadores preferem, a "pornocracia" do Vaticano -, marcado pelo controle de famílias nobres em resultado das tensões iniciadas no fim do século anterior. Foi um período tumultuado: entre os anos 872 e 904, por exemplo, a Igreja teve 24 papas, e quatro deles duraram menos do que um ano no posto. Em 896, Estêvão VII (?-897), resolveu julgar o cadáver do pontífice anterior. Com isso, protagonizou uma das cenas mais bizarras da história do papado. Para o julgamento, ele exumou e mutilou o cadáver do papa Formoso (816-896). Se Estêvão tinha poder para agir assim sem ser questionado, é porque, desde o século 8, a Igreja havia se aliado aos reis francos, Pepino e Carlos Magno, que garantiram aos papas o status de chefes de Estado, com território e exército. "A pornocracia do Vaticano é conhecida pelos papas jovens, alçados ao poder por nobres influentes, que se comportavam como monarcas sem moral, e não como líderes religiosos", afirma o pesquisador Anura Guruge. No centro desses 60 anos intensos está uma nobre chamada Marosia.

Aos 15 anos, Marosia, reputada como uma bela jovem na época, foi vendida por sua mãe, Teodora, como amante ao papa Sérgio III, papa entre 904 e 911, e que na época tinha 45 anos. Marosia e Sérgio tiveram um filho, Alexandre de Tusculum - que em 931 se tornaria o papa João XI. Sérgio foi encontrado morto, possivelmente envenenado. Seus sucessores Anastácio III e Lando I duraram, ambos, dois anos e meio no posto e morreram em circunstâncias não esclarecidas.

João X (860-928), que veio depois, era amante de mãe e filha, Teodora e Marosia. Irritada por não receber a atenção que queria, Marosia se casou novamente, desta vez com Guido de Túscia. Guido prendeu e torturou João X, deposto do papado em vida para que outro amante de Marosia, Leão VI, assumisse o cargo em 928. Sete meses depois, Leão VI foi assassinado. Em seguida, o filho de Marosia com Sérgio III se tornou papa, aos 21 anos. Muitas confusões depois, em 955, chegou ao comando da Igreja um neto de Marosia, Otaviano, de 18 anos. O papa João XII entraria para a história por estuprar fiéis, doar cálices de ouro a suas mulheres e dormir com a amante de seu pai e sua própria mãe, tudo dentro das instalações papais. Com sua morte, em 964, a pornocracia acabou.

Sobrinhos

Por algum tempo, o Vaticano tentou resgatar suas origens cristãs. Não foi uma evolução linear: em 1032, Bento IX chegou ao papado com cerca de 20 anos, abandonou o cargo para se casar, voltou em 1044, vendeu o papado por 680 quilos de ouro um ano depois, retomou o pontificado em 1047, o abandonou em 1048, foi excomungado em 1049 e passou o resto da vida tentando ser papa de novo - nesse meio-tempo, acabou acusado de ter amantes, dormir com cardeais e estuprar fiéis de ambos os sexos.

Em 1274, os papas passaram a ser eleitos por um concílio de cardeais, uma medida que dificultou a indicação de garotos que, em alguns casos, nem padres eram - hoje o papado é o cargo eleito mais antigo de que se tem notícia, ainda que a democracia vaticana seja restrita ao seleto grupos de cardeais da Igreja. Mas, no século 13, mais uma vez a influên-cia de uma nobreza sem lastro religioso tomou conta do Vaticano. Famílias poderosas resolveram aumentar seu poder político e financeiro com a força do papado. Durante a ascensão dos Bórgias, o Vaticano foi ocupado por uma série de pontífices que comprou brigas com famílias inimigas, indicou familiares para cargos cruciais da Igreja e instalou verdadeiros bordéis dentro das instalações papais. A nova crise moral foi mais longa: durou dois séculos e deu origem à palavra "nepotismo": no original, em latim, significava "indicar um sobrinho", uma prática muito comum na época. Como disse Leão X (1475-1521) à família ao assumir o cargo: "Vamos aproveitar o papado, já que Deus nos deu". Foi durante sua gestão, aliás, que teve início a Reforma protestante. Inocêncio VIII (1432-1492) deu cargos de influência a seus dois filhos. Paulo III (1468-1549) teve quatro filhos e fez de um deles, Pier Luigi Farnese, duque de Parma. Por sua vez, Júlio III (1487-1555) teve um longo caso com o cardeal Innocenzo Ciocchi del Monte (leia na página 47).

Venda de indulgências

Antes de o cisma de Avignon quase rachar a cristandade da Europa Ocidental, o Vaticano teve de lidar com outro foco de descontentamento na França. No século 12, os cátaros se espalharam pelo sul do país, pregando uma volta às origens do cristianismo e questionando a liderança papal. Para perseguir os revoltosos, surgiu em 1184 o tribunal da Santa Inquisição. Os cátaros foram massacrados, mas o tribunal continuou existindo para perseguir quaisquer outros inimigos da Igreja, fossem mulheres, pensadores ou homossexuais - em 1252, o uso de tortura para obter confissões foi autorizado.

No século 16, uma nova onda de descontentamento conseguiu dividir o cristianismo mais uma vez. A insatisfação de alguns líderes, como o monge alemão Martinho Lutero, com a con-dução da religião chegou ao auge durante o mandato do papa Leão X, de 1513 a 1521. O pontífice construiu a Biblioteca do Vaticano e tentou acelerar as obras de reconstrução da Basílica de São Pedro, iniciadas em 1505. Para pagar a conta, vendeu móveis, joias e objetos de decoração da cidade. E, principalmente, estimulou as indulgências, a absolvição total dos pecados em troca de dinheiro. O exagero foi tanto que o cardeal Alfonso Petrucci, de Siena, tentou matar o papa - ele e outros conspiradores foram descobertos e mortos por envenenamento.

Em 1517, Lutero pregou na porta da capela de Wittemberg suas famosas 95 teses, que questionavam a autoridade papal e davam início à Reforma Protestante. Foi um baque para Roma. Em pouco tempo, os cristãos da Europa Central, da Alemanha, da Holanda e da Inglaterra já haviam deixado a liderança do papa - boa parte dos franceses seguiu o mesmo caminho sem volta.

Em uma reação tardia, a Contra-Reforma católica acabou com a venda de indulgências em 1567 e declarou guerra aberta às novas denominações protestantes. A medida impediu que o racha fosse ainda maior, mas o estrago já estava estabelecido. Um dos efeitos colaterais foram as guerras religiosas que varreram a Europa durante as décadas seguintes. Em tempo: o tribunal da Inquisição existe até hoje. Agora se chama Congregação para a Doutrina da Fé. Entre 1981 e 2005, ficou sob o comando de Joseph Ratzinger, o agora papa emérito Bento XVI.

Acordo com o fascismo

A Igreja detinha um extenso território no meio das repúblicas italianas. Em 1870, porém, tudo isso tinha mudado. O papa foi convidado a deixar o palácio Quirinal, que passaria a abrigar o rei da Itália unificada. "A Igreja católica esteve muito perto de desaparecer. Foi uma das maiores crises de sua história", diz o jornalista espanhol Santiago Camacho. Se isso não aconteceu, foi graças a um acordo com o líder fascista Benedito Mussolini.

Em 1870, enquanto o Concílio Vaticano I declarava que o pontífice era infalível em matéria de fé e moral, os Estados Papais deixaram de existir e Pio IX (1792-1878) se tornou o último "papa-rei" - a perda de territórios tinha começado em 1859 e terminaria com o fim do controle sobre Roma. Em 1878, o corpo de Pio IX só não foi jogado no Rio Tibre (que já havia recebido os cadáveres de alguns outros papas ao longo da história) porque a multidão enfurecida foi contida pelos seguranças do Vaticano.

Nos anos 20, o catolicismo retomou parte de sua força com uma campanha para devolver à Igreja sua autonomia. A negociação foi conduzida pelos cardeais (e irmãos) Francesco e Eugenio Pacelli. Em 11 de fevereiro de 1929, Mussolini e o papa Pio XI se encontraram na residência papal, o Palácio de Latrão. A Igreja ganhou uma cidade autônoma dentro de Roma, além de US$ 90 milhões. Em troca, reconheceu a autoridade do regime fascista. Na Alemanha, um líder ambicioso comemorou o acordo: "O Vaticano confia nas novas realidades políticas muito mais do que o fez com a antiga democracia liberal. A Igreja reconhece que as ideias fascistas estão mais próximas da cristandade do que o liberalismo judeu". Seu nome: Adolf Hitler.

Em 1933, Eugenio Pacelli e Hitler, agora chanceler alemão, chegaram a um acordo, e políticos católicos apoiariam a lei que dava a Hitler poderes ditatoriais. Em 1939, Pacelli se tornou o papa Pio XII. "Mesmo quando o Holocausto era uma realidade, o papa falou poucas vezes condenando o massacre, e mesmo assim de forma ambígua", diz Camacho. Ainda hoje a postura dúbia de Pio XII provoca polêmica. "O papa não foi conivente com o nazismo, mas tampouco reagiu o suficiente."

Pedofilia e dinheiro

"No Vaticano, tudo o que não é sagrado é secreto", afirma o jornalista Santiago Camacho, autor de Biografia Não Autorizada do Vaticano. Mas, muitas vezes, é difícil manter em segredo o que não é sagrado. Os escândalos que atingiram a gestão de Bento XVI são casos que ocorrem há décadas e só vieram à tona nos últimos dez anos. Desde 2002, o clero vem sendo acusado de protagonizar milhares de casos de pedofilia.

Com a publicação, na época, de uma reportagem do jornal americano Boston Globe, começaram a vir a público centenas de acusações contra religiosos nos Estados Unidos, na Irlanda, no Canadá, na Austrália, na Alemanha, nas Filipinas, na Áustria, na Bélgica e na Argentina, entre vários outros países. As investigações retomaram casos mais antigos. E ainda causam estragos. O único cardeal do Reino Unido com direito a voto no conclave que elegerá o novo papa, Keith O¿Brien, renunciou no final de fevereiro, sob o peso de acusações de abuso sexual. Em 17 de dezembro, três cardeais entraram no apartamento do papa com um relatório de quase 300 páginas em mãos. Julian Herranz, Josef Tomko e Salvatore De Giorgi apresentaram o resultado de oito meses de investigação, encomendada pelo próprio Ratzinger, segundo reportagem do jornal italiano La Repubblica. Ao terminar de ouvir as informações, e com os papéis sobre sua mesa, o papa teria afirmado que a Igreja precisava de um homem capaz de realizar uma "ampla limpeza", de acordo com o jornal. A investigação documentaria a existência de um grupo homossexual, envolvendo padres e bispos, que faria parte de uma rede de prostituição de seminaristas, cantores de coro e imigrantes ilegais.

Os encontros entre membros do clero e garotos de programa seriam realizados em uma sauna de Roma, uma vila privada nos arredores da cidade, em um salão de beleza e na casa de um arcebispo italiano. Os envolvidos nesses casos, e também em escândalos de desvio financeiro, estariam sendo chantageados por outros grupos dentro do Vaticano - de acordo com o relatório, a cúpula da Igreja está dividida em vários partidos informais.

O relatório consolida o resultado de dez anos de escândalos recorrentes. Em 2011, o mordomo do papa, Paolo Gabriele, foi preso por roubar e repassar para o jornalista italiano Gianluigi Nuzzi documentos pessoais de Bento XVI, incluindo cartas em que o chefe da Igreja era informado dos casos de pedofilia envolvendo o clero em todo o mundo. Um ano antes, em 2010, Angelo Balducci, então presidente do Conselho Nacional de Obras Públicas e consultor do Vaticano, foi pego usando o telefone para intermediar a contratação de jovens para serviços sexuais. Em uma das ligações, Balducci recomendava um garoto disponível para encontros: "Só te digo que ele tem 2 metros, pesa 97 quilos, está com 33 anos e é completamente ativo".

Entre 2002 e 2010, a promotoria de Justiça do Vaticano recolheu alegações contra 3 mil padres, acumuladas nos últimos 50 anos. Um estudo do psiquiatra americano Thomas Plante aponta que 4 392 religiosos católicos estão envolvidos em acusações de molestamento sexual a menores de idade. São mais de 10 mil vítimas, 80% delas meninos. Os processos legais contra paróquias católicas já somam mais de US$ 3 bilhões em indenizações só nos EUA. Oito paróquias decretaram falência. Em reação, Bento XVI pediu diversas desculpas públicas, em cartas e discursos, e afastou o padre mexicano Marcial Maciel (1920-2008), fundador da congregação Legionários de Cristo - Maciel, um ferrenho defensor público do celibato, mantinha relações sexuais com seminaristas jovens, teve seis filhos com duas mulheres diferentes e é acusado de abusar de dois deles.

"Bento XVI era o responsável por investigar esses casos desde 1983, quando se tornou prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Em 1997, chegou a pedir ao papa João Paulo II para ser dispensado da função", diz a historiadora Brenda Ralph Lewis. "Ele demorou demais para agir, e só admitiu publicamente que a pedofilia era um problema quando não era mais possível esconder os casos". Antes disso, as denúncias foram tratadas como questão exclusiva dos bispos locais, que muitas vezes apenas transferiam os padres acusados para outras dioceses, onde eles continuavam em contato com crianças.

No mesmo dia de maio de 2012 em que o mordomo do papa foi formalmente acusado de roubar documentos, Ettore Gotti Tedeschi, presidente do Instituto das Obras da Religião (IOR), o banco do Vaticano, recebeu um voto de desconfiança do conselho de supervisão e pediu para deixar o cargo. Em 2010, Bento XVI havia estabelecido uma nova legislação do IOR, com regras mais rigorosas. Pelo visto, aqui também agiu tarde demais.

Desde pelo menos os anos 40, o Vaticano vive cercado por sombras a respeito das operações financeiras de seu banco. Os escândalos envolvendo o IOR começam com a suspeita de lavagem de dinheiro nazista e passam pelo envolvimento de pessoas ligadas à máfia - o arcebispo Paul Marcinkus, que comandou o banco entre 1971 e 1989, chegou a ser conhecido como o "banqueiro de Deus" antes de protagonizar, em 1982, o escândalo do rombo de US$ 1,5 bilhão no Banco Ambrosiano, de Milão. Dois meses antes, o presidente do Ambrosiano, Roberto Calvi, foi encontrado enforcado em uma ponte de Londres. Uma perícia comprovou que ele foi assassinado e depois peduraram seu corpo para simular suicídio. "Parecia estranho que os escândalos financeiros tenham vindo à tona nos últimos anos ao mesmo tempo que os casos de pedofilia", afirma o historiador Donald Prudlo. "Com as informações sobre o relatório de 300 páginas entregues ao papa, tudo se encaixa."

Os papas que saíram vivos

Como regra, o papa só deixa o cargo ao morrer. As renúncias em vida são exceções. De todos os pontífices que a Igreja teve até hoje, só 14 pediram para sair ou foram forçados a se afastar. "Até o século 6, alguns pontífices acabaram presos e exilados, e tinham que deixar o comando para abrir espaço para outro líder", afirma Roger Collins, autor de Keepers of the Keys: A History of the Papacy. "A partir do século 9, e até o século 16, as disputas internas por poder é que deram o tom das renúncias."

Fazem parte do primeiro grupo Ponciano (230-235), condenado pelo imperador romano Maximono Trax a trabalhos forçados na Sardenha. O segundo inclui Celestino V (1294): o último líder não eleito por um conclave publicou um decreto autorizando os papas a renunciar e fez uso dele.

O último a deixar o cargo antes de Bento XVI foi Gregório XII (1406 a 1415). Ele conviveu com dois antipapas e, aos 90 anos, durante o Conselho de Constança, decidiu renunciar para que um nome de consenso assumisse e acabasse com o cisma de Avignon. Uma curiosidade: Ratzinger é o terceiro Bento que renuncia ao papado. Os outros dois foram Bento V (964) e Bento IX (1032 a 1044; 1045; 1047 a 1048).

O último pontífice?

Depois de Bento XVI, o próximo papa vai ser o último - terá nascido em Roma e vai assumir o nome Pedro. Durante sua gestão, o Apocalipse vai começar. Ao acreditar nessa profecia, não só o papado está acabando como o fim do mundo está próximo. Publicada em 1595 pelo monge beneditino Arnold de Wyon, as Profecias de Malaquias são creditadas ao primeiro santo da Irlanda, que viveu entre 1094 e 1148. Durante uma visita ao Vaticano, em 1139, Malaquias teria visto os últimos dez papas e descrito cada um deles com frases curtas em latim. Na equivalência estabelecida entre os pontífices e o texto do século 16, João Paulo II seria De Labore Solis ("Do Trabalho do Sol") e Bento XVI, De Gloria Olivae ("Da Glória da Oliveira"). O próximo, e último da lista, seria Petrus Romanus ("Pedro Romano"). A conferir.

Papas nada cristãos

A lista dos pontífices que envergonharam Roma

Estevão VII (896 A 897)

Para se vingar de seu antecessor, Formoso (891-896), exumou o corpo enterrado nove meses antes, colocou nele as vestes papais e interrogou o cadáver.


Sérgio III (904 a 911)

Mandou matar o papa Leão V (903) e o antipapa Cristóvão. Foi amante da nobre italiana Marosia (veja na pág. 32), com quem teve um filho - que se tornaria papa.


João XII (955 a 964)

Cegou e mandou arrancar a pele de cardeais. Escolhia mulheres entre os peregrinos ao Vaticano para estuprar. Foi morto a marretadas pelo marido de uma amante.


Bento IX (1032 a 1044; 1045; 1047 a 1048)

O único a assumir o papado em três ocasiões diferentes. Na segunda, vendeu o cargo por 680 quilos de ouro ao sucessor, Gregório VI.


Nicolau III (1277 a 1280)

Usou o cargo para transformar parentes em cardeais e distribuir riquezas do Vaticano à família. Na Divina Comédia, de Dante, está no 8º círculo do inferno.


Bonifácio VII (974 a 984)

Para chegar a papa, estrangulou com as próprias mãos o pontífice Bento VI. Foi deposto, mas voltou ao cargo depois de matar mais um papa, João XIV.


Alexandre VI (1492 a 1503)

Teve várias amantes e pelo menos nove filhos - um deles supostamente com sua própria filha, Lucrezia. Em suas festas, garotos nus saltavam de dentro de bolos.


Urbano VI (1378 a 1389)

Mandava torturar cardeais e reclamava que eles não estavam gritando alto o suficiente. Afastado do cargo, viajou para Avignon e virou o antipapa Clemente VII.


Livros

Sua Santità: Le Carte Segrete di Benedetto XVI, Gianugi Nuzzi, Chiarelettere, 2012.

Keepers of the Keys: A History of the Papacy, Roger Collins, Basic Books, 2009.

Biografia Não Autorizada do Vaticano, Santiago Camacho, Planeta, 2006.

Sex Lives of the Popes, Nigel Cawthorne, Prion, London, 1996.

Popes and Anti-Popes, John Wilcock, Xlibris Corporation, 2005.