23.9.13

Primeira Guerra Mundial: o uso de gás como arma química em batalhas


Primeira Guerra Mundial, 1915: soldados alemães se aproveitam da direção do vento para lançar gás mortal sobre os inimigos
Foto: Getty Images


1915: tropa francesa usa versão primitiva de máscaras contra gás durante a Batalha de Ypres
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1915: centenas de soldados italianos foram mortos por gás durante a Primeira Guerra Mundial
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Oficial alemão aproveita cortina de gás para avançar com sua tropa em direção à trincheira inglesa
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1916: Alarme alemão usado para avisar as tropas em caso de ataque de gás
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1917: cavaleiro alemão usando máscara de gás
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1918: equipado contra gases venenosos, soldado russo avança no campo de batalha
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1918: até os cavalos das tropas alemãs tiveram de ser protegidas dos gases com máscaras.
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Com o advento da poderosa indústria química no século 19, foi inevitável que na Primeira Guerra Mundial, de 1914 a 1918, se usasse o gás venenoso como uma arma de combate. Depois de duas experiências sem resultados feitas no front ocidental, ainda em 1915, o exército alemão, seguido dos franceses e ingleses, fez largo uso do gás de cloro e de mostarda a partir de 1916. Assim, os soldados conheceram mais um abominável instrumento de morte. O pavor dos atingidos pela nuvem mortífera foi total. Desde então, nada provocou no homem contemporâneo tamanha fobia do que vir a morrer inalando gás venenoso. Tanto assim que, depois da Grande Guerra, assinou-se um acordo em Genebra, em 1925, no qual a maioria dos países assumiu o compromisso de não usá-lo.


O gás no front de batalha

Registra-se o dia 3 de janeiro de 1915 como a data fatídica em que pela primeira vez os alemães abriram cilindros de gás venenoso sobre as trincheiras inimigas, operação, diga-se, inutilizada pelas baixas temperaturas do inverno Europeu. Mas logo que o tempo melhorou, com a primavera, em 25 de abril de 1916, a situação foi outra. Nos dias seguintes, na região de Langemarck, perto de Ypres, uma densa névoa verde-cinza, típica do gás de cloro, expelida de 520 cilindros, começou a soprar em direção às linhas de um regimento franco-argelino que sustentava a posição nas trincheiras em frente.


Quando os soldados viram aquele vapor tóxico vindo na direção deles, envolvendo tudo, adentrando por todo os lados, provocando-lhes uma violenta náusea, foi um salve-se quem puder. Era o sopro do dragão. O pânico fez com que eles, deixando as armas e as mochilas, corressem como loucos para as linhas da retaguarda em busca da salvação. Tiveram que improvisar algumas máscaras na hora, mas sem grandes resultados.

Nas trincheiras e nos campos, jogados ao léu, encolhidos, espumando, ficaram os que não conseguiram escapar. Psicologicamente foi um sucesso. O inimigo desertara em massa. A notícia logo se espalhou de boca em boca pelos corredores das trincheiras e dos valos onde milhares de homens se encontravam - um diabo em forma de nuvem fétida estava solto pelos campos de batalha.

A banalização do uso do gás
Em setembro daquele mesmo ano de 1915, os ingleses deram a sua resposta ao ataque de gás em Ypres, jogando sobre os alemães entrincheirados perto de Loos uma substantiva quantidade de gás de cloro. Se no começo desse tipo de recorrência ao gás mortífero era costume utilizar grandes cilindros para despejar veneno ao sabor da direção em que o vento soprava, em seguida avançaram para o uso de um cartucho próprio, o The Projetor, capaz de lançar cápsulas de gás venenoso a enorme distância.

A partir do ano de 1916, especialmente durante a longa batalha de Verdun, travada entre alemães e franceses, o gás entrou em cena de vez. E desta feita foi a estreia de novo gás muito mais mortífero em seus efeitos do que o cloro - o chamado gás de mostarda (dichlorethylsulphide). De cor amarelada forte, ele mostrou ser capaz de devastar as linhas adversárias mesmo em meio às tropas equipadas com máscaras antigas. Em contato direto com qualquer parte da pele da vítima, de imediato, ele levantava bolhas amareladas, atacando em seguida os olhos e as vias respiratórias. Além disso, tinha a capacidade de permanecer fazendo efeito durante um tempo bem superior do que os outros, como o gás lacrimogêneo (lachrymator), não mortal, e o de cloro, seja ele fosfogênico ou difosgênico.

Deste então, pelos dois anos seguintes, até 1918, a paisagem da guerra das trincheiras foi toldada pela presença sistemática dos vapores do gás de mostarda que, utilizado por ambos os lados, passou a ser o manto sombrio e enfumaçado da morte asfixiante que cobria os soldados em seus últimos momentos de vida. Tamanha foi a presença nas batalhas que no ano final da guerra, em 1918, ¼ dos obuses lançados pela artilharia eram de gás venenoso.

O testemunho de um poeta
Vários escritores testemunharam ou eles mesmo passaram pela terrível experiência do envenenamento por gás durante a Grande Guerra de 1914-1918. Uma das descrições mais impressionantes de um ataque por gás contra uma patrulha foi deixada em versos pelo poeta britânico Wilfred Owen, antes de ser abatido pela metralha alemã uma semana antes do final da guerra, no dia 4 de novembro de 1918. Owen deixou seu testemunho no célebre poemaDulce et decorum est:


DULCE ET DECORUM EST (1917)

Totalmente encurvados como se fossem velhos mendigos em fila, joelhos dobrados, tossindo como bruxas, andávamos sobre a maldita lama / Até o momento em que os insistentes sinalizadores nos fizessem voltar / Então, na distância que nos restava percorrer, começamos a nos arrastar /

Alguns marchavam tontos de sono. Muitos deles haviam perdido suas botas, mancando, com os sapatos ensanguentados / Todos estavam estropiados, todos cegos: bêbados de fadiga, surdos mesmo aos alarmes de que um cartucho de gás havia estourado ali perto /

Gás! Gás! Rápido rapazes! Num êxtase mal ajeitado, todos tentam colocar a máscara ainda a tempo. Mas alguém continuava gritando alto e tropeçando, como um homem em meio ao fogo ou a lama / Confuso, como se estive metido numa densa e enevoada vidraça de luz verde, como se estivesse num mar verde, eu o vi se afogando /

Em todos os sonhos que tive depois dessa desamparada cena, ele aparecia precipitando-se sobre mim, derretendo-se, sufocado, afogado /

Não sei se com esses enfumaçados sonhos você também conseguirá ter paz /

Atrás do vagão em que o jogamos, atentei para o branco dos olhos dele convulsionando-se no seu rosto / A sua cara de enforcado, como se fosse um diabo vomitado pelo pecado / Você podia escutar, a cada solavanco, o sangue saindo, gorgulhante, dos seus pulmões corrompidos /

Obsceno como um câncer, amargo como fel. Quão vil e incuravelmente inflamado em línguas inocentes / Meu amigo você não vai querer este tipo de prazer elevado / Tão ardentemente infantil em querer alcançar tal glória desesperada /

É uma velha mentira: Dulce et decorum este Pro patria mori (Quão doce e honrado é morrer pela pátria!) /

Uma tela impressionante

A marcha dos gaseadosFoto: Tela de John Singer Sargent / Wikimedia

Mal terminado o conflito, assinado o Armistício em 11 de novembro de 1918, o Comitê do Memorial da Guerra de Londres encomendou uma tela ao pintor norte-americano John Singer Sargent para vir ilustrar o Hall of Remembrance, o Salão da Recordação, que iram construir para homenagear os milhares de mortos na Grande Guerra. Sargent que estivera no front, resolveu retornar às linhas abandonadas da França, em 1919, em busca de uma inspiração direta. Então se lembrou das filas dos soldados atingidos pelo gás venenoso que o impressionaram muito. A partir daí, recorrendo às imagens dos frisos greco-romanos das procissões sagradas, fez uma série de estudos para depois juntá-los num impressionante painel, em cor pastel, da desolação humana. O resultado da obra de Sargent foi estarrecedor, parecendo-se uma atualização da "Parábola dos Cegos", tela de Pieter Brueghel, pintada no século 16, um dos mais impressionantes flagrantes do desamparo que a cegueira provoca.É significativo de que a cena de sofrimento que mais comoveu aquela geração de combatentes não tenha sido o padecimento e as doenças nas trincheiras, nem a morte estraçalhada pelos obuses da artilharia, nem os ventres abertos pela metralha e pela baioneta, ou os corpos horrivelmente carbonizados pelo lança-chamas, mas sim a consternação provocada em todos pelos soldados gaseados.

A parábola dos cegosFoto: Tela de Pieter Brueghel / Wikimedia

Comentário de uma enfermeira
Os horrores dos ferimentos provocados por um ataque por gás mereceram também o registro da enfermeira Vera Brittain que, logo em seguida ao término da guerra, deixou o seu testemunho no A testament of youth, de 1918, de onde se retirou o seguinte comentário:

"Eu gostaria que uma dessas pessoas que dizem querer levar a guerra até suas consequências finais que vissem os soldados envenenados pelo gás de mostarda. Grandes bolhas cor de mostarda, cegos, todos eles agarrando-se uns aos outros, lutando desesperadamente para respirar, com vozes que são um sussurro, dizendo que a garganta deles está se fechando e que logo eles vão sufocar-se".

Um testemunho literário
Num dos mais famosos romances da literatura francesa do século 20, Os Thibault, de Roger Martin du Gard, nos capítulos derradeiros encontra-se uma detalha descrição do efeito que o envenenamento faz sobre um dos personagens, o médico Antoine Thibault que, internado num sanatório, vai aos poucos fenecendo até o desenlace fatal.

Tipos de gases
O gás de cloro (Cl2) foi o primeiro deles. Desde então, muitas outras substâncias já o suplantaram. Podemos classificar as armas químicas de acordo com o modo como atuam.

Principais tipos: AGENTES ASFIXIANTES AGENTES QUE ATUAM NO SANGUE AGENTES CAUSADORES DE FERIDAS AGENTES LACRIMOGÊNEOS AGENTES NERVOSOS

Atuam nos pulmões, causando-lhes sérias lesões e dificultando a respiração. Podem provocar a morte por asfixia.

Exemplos:
Cl2 (gás cloro)

COC2 (fosfogênico)

Cl3C-NO2 (cloropicrina)

Também matam por asfixia, mas por meio de outro mecanismo. São substâncias que se combinam com a hemoglobina, tornando-a incapaz de transportar o O2 para as células do organismo.

Exemplos:
HCN (gás cianídrico)

ClCN (cloreto de cianogênio)

BrCN (brometo de cianogênio)*

*usados nas câmaras de gás e nas sentenças de morte ainda hoje nos EUA

Provocam irritações nos olhos e na pele. Dependendo da quantidade, causam feridas, náuseas e vômitos. A irritação dos pulmões pode matar por asfixia.

Exemplos:
Cl-CH2CH2-S-CH2CH2-Cl (gás mostarda)

Cl-CH2CH2-N(CH3)-CH2CH2-Cl (mostarda de nitrogênio)

ClCLCHAsCl2 (Lewisita)

Provocam uma forte irritação nos olhos.

Exemplos:
H3CCOCH2Cl (cloro-acetona)

H3CCOCH2Br (bromo-acetona)

H2CCH-COH (acroleína)

Das armas químicas são as mais perigosas. Normalmente não têm cor nem cheiro. Atuam sobre o sistema nervoso, bloqueando a transmissão dos impulsos nervosos de uma célula (neurônio) para outra. Matam em minutos por parada cardíaca ou respiratória.

Exemplos:
(H3C)2NPO(CN)OCH 2CH2 (tabun)

H3CPOFOCHCH3CH3 (Sarin)

H3POFOCHCH3CCH3 CH3CH3 (agente VX)
Fonte: dados fornecidos pela professora Margot Andras (Mestre-Unicamp)

Baixas provocadas pelo gás na Primeira Guerra Mundial entre 1915 e 1918:

PAÍS                                     TOTAL DE ATINGIDOS          MORTOS
Grã-Bretanha                                  188.706                               8.109
França                                            190.000                               8.000
Estados Unidos                                 72.807                               1.462
Itália                                                  60.000                               4.627
Rússia                                             475.340                             56.000
Império Alemão                              200.000                               9.000
Áustria-Hungria                               100.000                              3.000
Outros                                              10.000                              1.000
TOTAL                                      1.296.853                             91.198
Fonte: Gas Death in The First World War - learn.co.uk

Nota: ainda que o percentual de mortos seja pequeno em relação aos que foram atingidos pelo efeito do gás venenoso (7% do total), é de se observar que a intenção do seu uso era mais provocar o pavor e o pânico coletivo das tropas do que realizar grandes baixas. O gás foi usado para dissolver as linhas de frente da batalha, para provocar um corre-corre geral que permitiria o avanço daqueles que o lançavam.

Fonte: Terra