2.4.14

Leningrado, sinfonia heroica

A cidade resiste ao ataque dos alemães não apenas com armas, mas com uma obra musical de Shostakovich, composta entre alertas de ataques aéreos

STATE MEMORIAL MUSEUM OF DEFENCE AND SIEGE OF LENINGRAD, SAINT PETERSBURG

Em 1944, com o fim do cerco, expressão de alívio e felicidade no rosto de mulheres que se preparam para apagar cartaz que alertava para o perigo e bombas

Por Xavier Donzelli

As cenas se alternam: ora revelam as mãos ágeis do pianista, que faz malabarismos no teclado, ora exibem o músico, seu instrumento e um salão iluminado miseravelmente por velas. A fachada do imóvel, crivada de balas, invade a tela. Na rua sucedem-se vultos fantasmagóricos. Um plano geral exibe civis agasalhados que dividem espaço com soldados armados. Chega-se aos limites da cidade, a seus subúrbios destruídos. Ouvem-se explosões. A câmera sobrevoa trincheiras, fortifi cações, uma terra arrasada marcada pela ação incessante da artilharia. Em seguida, vêm ordens secas em alemão. Podem-se distinguir na penumbra postos avançados da Wehrmacht...

Não procure na sua memória de cinéfilo a lembrança dessa sequência: ela nunca foi rodada. Sergio Leone planejou fazê-lo, mas o diretor italiano morreu em 1989 antes de realizar a primeira tomada. No entanto, essa cena existiu. As mãos são as do compositor Dmitri Shostakovich. A ação aconteceu em Leningrado, no dia 19 de setembro de 1941.

Fazia três meses que a operação Barbarossa – a invasão da URSS por Hitler – havia começado. Por meio de um ataque-surpresa, as forças armadas do Reich subjugaram o Exército Vermelho e penetraram no território russo, sem dar ao inimigo chance de se recompor, de se organizar. A ordem era pegá-lo pela garganta e estrangulá-lo. Na Ucrânia e nos países bálticos já tremulava a bandeira com a suástica. Os finlandeses, que declararam guerra à URSS em 26 de junho, se aproximavam de Leningrado. A operação de Hitler previa a sua conquista em um mês – ou seja, no final de julho.

Na cidade dos czares, o diretor do conservatório, Dmitri Shostakovich, preparava-se para uma audição de seus alunos quando ocorreu o ataque. Shostakovich está apreensivo: tem um trabalho a fazer em meio ao caos da guerra. Trata-se da sua sinfonia, a Sétima, que já tinha inscrito no programa do conservatório para a temporada 1941-1942. Será que ela veria a luz do dia? E o que compor em tais circunstâncias?

No front, o Exército Vermelho luta com a energia do desespero. Desde 8 de agosto, os primeiros Junkers alemães sobrevoam Leningrado. A defesa se organiza. Noventa mil civis se empenham em defender sua cidade. Shostakovich deseja participar. Pedido negado – fora de questão arriscar a vida de um homem tão ilustre. Ele insiste. Para não deixarem de atendê-lo, as autoridades o designam para uma brigada anti-incêndio. Em 29 de julho, um fotógrafo o imortaliza vestido de bombeiro com um capacete rutilante. A imagem correu o país. O grande compositor encarna o espírito de resistência de Leningrado.

Mas a cidade vai resistir ainda por muito tempo? No dia 1º de setembro granadas se abatem sobre zonas industriais e devastam ruas do centro da cidade. Shostakovich, entre um alerta e outro, trabalha. Ele compõe: no dia 3, o primeiro movimento de sua sinfonia – A invasão – fica pronto. Uma semana depois, após um novo assalto, Leningrado, ameaçada ao norte pelos finlandeses e ao sul pelos alemães, encontra-se separada do resto da Rússia. É o início de seu longo cerco. Única saída para o abastecimento da cidade sitiada: o lago Ladoga, no nordeste, fora do alcance do inimigo.

Após o bombardeio dos entrepostos de abastecimento, em 8 de setembro, as reservas de alimentos e combustível se esgotam – estima-se que não durarão mais de duas semanas... No dia 17, os alemães se apoderam do bairro Alexandrovska. No mesmo dia, Shostakovich dá os últimos retoques no segundo movimento da Sétima. Ele a submete ao parecer de amigos músicos que reúne em sua casa, na rua Skorokhodov, no bairro de Petrogrado – entre os quais, o compositor Gavriil Popov. Shostakovich é interrompido pelo toque das sirenes, que alertam para que as famílias se refugiem em seus abrigos. A cerca de 100 metros do local onde acontece essa primeira audição, o Gostiny Dvori, centro comercial na avenida Nevsky, está em chamas.

Esse dilúvio de bombas era o desejo de Hitler. Em 22 de setembro, o Führer declara querer “apagar Leningrado da face da terra”. A situação da cidade se agrava em outubro. Seus moradores fi cam sem combustível e eletricidade às portas do inverno. As rações diminuem drasticamente para 300 gramas de pão por dia para os soldados e 125 para os civis.

Como outros artistas de Leningrado, Shostakovich também teve que deixar a cidade. Ele foge, em 1º de outubro, em direção a Moscou, depois Kouibychev, na Sibéria – longe do front. Lá ele se abriga numa casa simples com sua mulher, Nina, e seus dois filhos, Galina (5 anos) e Maxime (3 anos). O artista levou apenas algumas partituras, entre as quais a da Sétima, mas nesse refúgio a inspiração lhe falta e as notícias provenientes do front o alarmam.

Shostakovich cede ao desânimo por algum tempo. Mas o compositor não é do tipo que se deixa abater. Ele sempre respondeu à adversidade com a criação. Em 27 de dezembro de 1941, a sinfonia está pronta. Nas primeiras páginas da partitura, pode-se ler a seguinte dedicatória : “À cidade de Leningrado”.

Desde então, essa peça magistral, escrita para uma centena de instrumentos, permanecerá intimamente ligada à história da cidade e ao cerco que ela vai enfrentar, o mais longo da história da guerra. A operação maquiavélica de Hitler – sitiar Leningrado pela fome (2,5 milhões de habitantes) – leva à morte 630 mil pessoas durante o inverno de 1941-1942. A cidade resiste de qualquer maneira: sem aquecimento, sem eletricidade, quase sem víveres e medicamentos, iluminada à luz de velas. Mas, em 22 de novembro, os primeiros caminhões de abastecimento seguem a estrada traçada sobre o lago Ladoga congelado – esse cordão vital será, até 1943, a única via de abastecimento da cidade.

Em Kouibychev, uma orquestra foi encarregada, no início de 1942, da execução da Sétima. As apresentações se sucedem, sob a batuta do maestro Samuel Samossoud. Em fevereiro, no Pravda, órgão do Partido, Alexei Tolstoi, entusiasta do regime, elogia Shostakovich nestes termos: “Tendo escutado bater o coração da pátria, (ele) compôs um hino ao seu poder, a seu triunfo futuro...”

As palavras do poeta ressoam nos ouvidos de Stalin, que, mesmo não tendo especial afeição pelo compositor, avalia que benefícios pode tirar da obra – seu objetivo: que ela encarne o espírito da “Grande Guerra patriótica” que ele invoca para galvanizar seu povo. E, quando Stalin ordena, os sovietes obedecem: em 5 de março, os músicos do Bolshoi – também exilados em Kouibychev – executam a sinfonia. No dia 22, ela é reprisada em Moscou. Desde então, nada mais, nem mesmo o alerta disparado nesse dia durante o segundo movimento, poderá interpor-se à sua marcha triunfal.

Vários países requisitam a partitura. Microfi lmada, e escondida numa lata, ela começa então um périplo épico. Transportada de avião até Teerã, segue de carro até o Cairo, de onde voa para a Inglaterra. Ela foi tocada uma primeira vez pela Orquestra Filarmônica de Londres e retransmitida pela BBC em 22 de junho de 1942. Uma semana depois, convidados ilustres se apressam para o prestigioso Royal Albert Hall, onde a Sétima está em cartaz.

Nos Estados Unidos, três maestros exilados – Serguei Koussevitzky, Leopold Stokowski e Arturo Toscanini – chegam mesmo a disputar o privilégio de reger o primeiro concerto nas Américas. Em 19 de julho, a poderosa rede de difusão da NBC retransmite para todo o país o concerto – regido finalmente por Toscanini. A lenda da Sétima começa. A foto de Shostakovich vestido de bombeiro nas ruas de Leningrado deu até capa na revista Time.

Fonte: http://www2.uol.com.br/historiaviva/reportagens/leningrado_sinfonia_heroica.html

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