7.6.17

O Fogo-de-Santelmo na Literatura de Viagens

O «LUME VIVO QUE A MARÍTIMA GENTE TEM POR SANTO», NO DIZER DE CAMÕES, APARECE INÚMERAS VEZES NA LITERATURA PORTUGUESA







A primeira referência escrita à luminosidade hoje conhecida como fogo-de-santelmo é, possivelmente, a que aparece nos «Hinos Homéricos», uma colectânea de poemas no estilo de Homero escrita por vários autores desconhecidos. Referem-se aí os gémeos mitológicos «Castor o domador de cavalos e o inocente Pólux, filhos de Zeus e filhos gloriosos da Leda do belo andar». Por ocasião das tempestades, diz-se que os marinheiros apelam a esses «filhos do grande Zeus, consagrando cordeiros brancos e deslocando-se para a proa; o vento forte e as vagas do mar mantêm o navio sob a água, até que, subitamente, os dois são avistados no ar, rápidos e com asas douradas. Imediatamente suavizam as rajadas dos ventos cruéis e acalmam as ondas sobre o branco mar: são belos sinais e um salvamento» .

Para os gregos, a luminosidade nas pontas dos mastros que se via em momentos tempestuosos podia ser sinal de mau augúrio, quando a luz tinha uma ponta apenas, caso em que associavam o fenómeno a Helena , a irmã de Castor e Pólux. Mas essa luminosidade era um sinal de bom augúrio quando tinha duas pontas, caso em que a associavam aos dois gémeos mitológicos. Segundo a lenda, estes tinham poder sobre as forças tempestuosas e eram pois considerados protectores dos marinheiros.

Aristóteles, nos «Metauros», descreve o mesmo fenómeno e Plínio o Velho (c. 29–79 d.C.), o grande enciclopedista romano, refere-se-lhe demoradamente na sua «História Natural», confirmando que, «se for um, anuncia uma tempestade severa», mas «se forem dois, e isso quando a tempestade se tiver desenvolvido, é um bom sinal».

Nos Comentários de Júlio César, descreve-se o fenómeno observado em terra: «No mês de Fevereiro, cerca do segundo turno da noite, levantou-se subitamente uma nuvem escura a que se seguiu uma chuvada de granizo, e na mesma noite as pontas das lanças da V Legião pareceram incendiar-se».









Séculos mais tarde, já na era cristã, os navegadores do Mediterrâneo viam neste lume misterioso o sinal da intervenção do Corpo Santo através de Santo Erasmo, um bispo italiano assassinado em 303 d.C. também conhecido por Santo Elmo ou Sant’Elmo.

Nos tempos das Descobertas, os marinheiros portugueses e espanhóis, tomariam como protector outro santo da Igreja Católica, um frade dominicano do século XIII de nome Pero Gonçalves. Com os anos, as lendas fundiram-se, e o nome «Telmo» foi-lhe justaposto. Nos fins do século XVI falava-se em Pero Gonçalves Telmo, como se sempre tivesse sido esse o seu nome.

A literatura portuguesa abunda de referências ao santo e ao fenómeno luminoso. Começando pelos relatos de viagem, vale a pena destacar o que escreveu D. João de Castro, o grande intelectual viajante do século XVI, no Roteiro de Lisboa a Goa de 1538.

«Tornando a 2ª vez à Índia, que foi no ano de 1545, esta mesma noite nos apareceu a aparência ou sinal a que os marinheiros chamam Corpo Santo, per duas vezes, e duraria espaço de meia hora. Primeiramente o vimos na ponta do mastaréu da gávea, e depois no lais da verga, e depois na ponta do mastro da mesma e depois na enxárcia. Esta aparência a que chamam Corpo Santo era uma claridade tamanha como a que costuma fazer uma candeia ou vela, mas a sua luz não era vermelha como fogo, mas prateada à semelhança do que se vê na Lua; e, quando dava algum relâmpago, não aparecia esse sinal. Porém, como passava o esplendor do relâmpago, tornava a aparecer. Quando nos apareceu este sinal, chuviscava, e o céu estava escuro e cerrado, e foi cousa muito patente e sem nenhum engano de vista, e parecia mistério e segredo da natureza. A este tempo estávamos norte sul com o Rio do Infante, e em altura de 34º.»





"Santelmo Socorrendo os Náufragos", óleo de cerca de 1714 existente na capela do Palácio do Corpo Santo, em Setúbal. Note-se o arco-íris, correctamente colorido, e a vela na mão do santo.



Na História Trágico-Marítima há várias referências interessantes. Na Relação do Naufrágio da Nau Santa Maria, um relator anónimo descreve a crença extrema dos marinheiros.

«Têm todos os homens do mar tamanha veneração ao Bem-Aventurado S. Frei Pero Gonçalves, e o têm por tão seu advogado nas tormentas do mar, que crêem de todo o seu coração que aquelas exalações que nos tempos fortuitos e tormentosos aparecem sobre os mastros, ou em outras partes da nau são o Santo que os vem visitar e consolar. E, tanto que acertam de ver aquela exalação, acodem todos ao convés a o salvar com grandes gritos e alaridos, dizendo: — «Salva, salva, Corpo Santo». E afirmam que, quando aparecem nas partes altas, e são duas, três ou mais, aquelas exalações, que é sinal que lhes dá bonança; mas, se aparecer uma só, e pelas partes baixas, que denuncia naufrágio. E tão crentes e firmes estão nisto que, quando aquelas exalações aparecem sobre os mastaréus, sobem os marinheiros acima, e afirmam que acham pingos de cera verde; mas eles não os trazem nem os mostram. Ao menos nós não os vimos alguma hora. e se os religiosos que vêm nas naus lhes querem ir à mão, dando-lhes razões para lhes mostrar que aquilo são exalações, e declarando as causas naturais por que se geram e por que aparecem, não falta mais que tomarem as armas e levantarem-se contra quem lhes contradiz aquela sua fé, que por tal o têm.

Um outro relato na mesma colectânea é o de Henrique Dias, criado de D. António, Prior do Crato, na Relação da Viagem e Naufrágio da Nau S. Paulo, que partiu da Índia em 1560:

«[...] a qual claridade vendo o contramestre e marinheiros da proa a começaram a salvar da parte de Deus e Nossa Senhora e seus Santos, em vozes muito altas a que a gente toda à uma respondia com grandes gemidos e lágrimas [...] Assim que toda a noite se foi nestes gemidos e brados, andando sempre estas luzes conosco.»



Fresco no tecto da mesma capela representando Santelmo auxiliando um náufrago.





Na Etiópia Oriental, de Frei João dos Santos , descrevem-se as aventuras da nau S. Filipe, que tinha saído de Lisboa em 1586.

«[Numa noite de tempestade] apareceu o Corpo Santo em a verga do mastro grande, em figura de uma faísca de fogo, muito clara e resplandecente, e dali, à vista de todos, se foi pôr sobre o mastro da mezena, onde o salvou o piloto da nau, da cadeira em que estava governando, dizendo: Salvé, Corpo Santo, salvé: boa viagem, boa viagem. E toda a mais gente da nau, que presente estava, respondeu da mesma maneira: Boa viagem, boa viagem, com muitas lágrimas de alegria. Neste lugar esteve esta luz resplandecente um grande espaço de tempo e dali desapareceu à vista de todos.»

Mais à frente, dá-se conta dos conflitos entre mareantes e prelados que esta crença extrema podia desencadear. A determinada altura da borrasca um soldado ajoelhara perante a luz e batera no peito repetidamente exclamando: «Adoro-vos, meu Senhor Pero Gonçalves; vós me salvai neste perigo por vossa misericórdia». Os padres a bordo advertiram-no de que não deveria orar assim, pois a adoração se devia apenas a Deus e não aos santos. Mas o soldado respondeu «Meu Deus será agora quem deste perigo me tirar».

Na escrita literária portuguesa aparecem também várias referências interessantes ao fogo-de-santelmo. Gil Vicente, no Acto segundo, Cena I do «Triunfo do Inferno» coloca um marinheiro a gritar, ao som da ventania endiabrada:

«Ei-lo precioso santo
Frei Pero Gonçalves Bento


PILOTO:
Empara-nos de tanto vento
C’o teu precioso manto
Senhor, libra-nos a malo


GREGÓRIO:
Dêmos à bomba, piloto;
Dai ó demo Frei Gonçalo,
E não Frei Pero Minhoto


PILOTO:
É o bem-aventurado
Frei Pero Gonçalves bento.»




Camões fala do fogo-de-santelmo, que descreve como «o lume vivo, que a marítima gente tem por santo», nos dois primeiros versos da estância 18 do Canto V d’Os Lusíadas. A referência insere-se no relato feito por Vasco da Gama ao rei de Melinde, na parte em que enumera as experiências fantásticas testemunhadas pelo narrador:

«Os casos vi, que os rudos marinheiros,
Que têm por mestra a longa experiência,
Contam por certos sempre e verdadeiros,
Julgando as cousas só pola aparência,
E que os que têm juízos mais inteiros,
Que só por puro engenho e por ciência
Vêm do mundo os segredos escondidos,
Julgam por falsos ou mal entendidos.



«Vi, claramente visto, o lume vivo
Que a marítima gente tem por santo,
Em tempo de tormenta e vento esquivo,
De tempestade escura e triste pranto.
Não menos foi a todos excessivo
Milagre, e cousa, certo, de alto espanto,
Ver as nuvens, do mar com largo cano,
Sorver as altas águas do Oceano.»




Bocage alude à crença no soneto Deprecação feita durante uma tempestade:

«Oh Deus, oh Rei do Céu, do mar, da terra
(Pois só me restam lágrimas, clamores),
Suspende os teus horrísonos furores,
O corisco, o trovão, que a tudo aterra:

Nos subterrâneos cárceres encerra
Os procelosos monstros berradores,
Que, enchendo os ares de infernais vapores,
Parece que entre si travaram guerra.


Para nós, compassivo os olhos lança,
Perdoa ao fraco lenho, atende ao pranto
Dos tristes, que em ti põem sua esperança!

Às densas trevas despedaça o manto,
Faze, em sinal de próxima bonança,
brilhar no etéreo tope o lume santo.»




E Afonso Lopes Vieira, numa paráfrase a um relato da «História Trágico-Marítima», faz uma chamada ao passado esquecido e lamenta o esmorecimento do culto a S. Pero Gonçalves:

«Por te enramarem coentros,
Entre bailes e folias,
Tu às hortas de Enxobregas,
São Frei Pero, de antes ias.

Assim nos guies e salves,
Senhor São Pero Gonçalves!

Pelas outavas da Páscoa
Era o teu dia marcado ;
Vinhas então de Enxobregas
De coentros enramado.

Assim nos guies e salves,
Senhor São Pero Gonçalves!



Bailando por São Frei Pero,
Não havia homem do mar
Que não tecesse capela
Para ao redor a levar.

Assim nos guies e salves,
Senhor São Pero Gonçalves!

Que tamanha devoção!
Mas São Pero, no mar
Acendia a luz nos mastros
Para a tormenta amainar.

Assim nos guies e salves,
Senhor São Pero Gonçalves!

Quando se lá acendia,
Essa benta luz de encanto,
Todos no convés em grita:
— Salva, salva, oh Corpo Santo!

Assim nos guies e salves,
Senhor São Pero Gonçalves!

Mas São Frei Pedro, esquecido,
Já não vai às hortas, não;
Não tem bailes nem folias,
No mar não tem devoção.

Assim nos guies e salves,
Senhor São Pero Gonçalves!

Por isso as naus se desgarram,
Santo nome de Jesus!
Salva, salva, oh Corpo Santo,
Acende ao alto a tua luz!

Assim nos guies e salves,
Senhor São Pero Gonçalves!»


As referências literárias e populares são muitas e inequívocas, tais como o são muitos relatos de viagem. Os relatos referem-se a um fenómeno atmosférico verdadeiro, hoje chamado fogo-de-santelmo. Um fenómeno de tal forma integrado na história e literatura portuguesa que nesta se encontram muitas das descrições históricas que contribuíram para o seu conhecimento científico.


Fonte:http://cvc.instituto-camoes.pt/ciencia/e39.html